sexta-feira, 11 de outubro de 2013

A flexibilização da jornada de trabalho e seus reflexos na saúde do trabalhador - Parte 1

*Este artigo foi publicado na Revista LTr, em fevereiro de 2013, p.181-192, bem como em outras revistas especializadas.

A FLEXIBILIZAÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO E SEUS REFLEXOS NA SAÚDE DO TRABALHADOR


PARTE 1

José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva[1]

1 Introdução
Há muito se tem afirmado que a saúde do trabalhador se trata de um direito humano e que pode ser afetado por inúmeros fatores no curso da relação de emprego, por vezes desaguando em acidentes do trabalho ou adoecimentos ocupacionais. E também há uma voz corrente no segmento juslaboral no sentido de que o excesso de tempo de trabalho, decorrente das extensas jornadas praticadas pelos trabalhadores, é uma das causas do surgimento dos infortúnios laborais. O que se pretende investigar nesse breve artigo é a coerência dessas afirmações, à luz dos entendimentos jurídico-científicos sobre o tema, mas principalmente com a análise das estatísticas correspondentes.
O tempo é um fenômeno que tem fascinado os estudiosos no curso da história. Ademais, a medição do trabalho prestado por conta alheia, desde os primórdios, levou em consideração, entre outras coisas, a extensão temporal em que o trabalho é destinado a outra pessoa. Por isso, o tempo apresenta tamanha importância para o Direito do Trabalho, pois o tempo de trabalho ocupa uma posição de centralidade na normatização deste ramo do Direito. É possível sustentar que o tempo de trabalho, mais precisamente sua limitação pela normativa estatal, é parte inseparável da própria gênese do Direito do Trabalho. Daí porque ainda hoje os dois temas fundamentais desta disciplina são o salário e a limitação do tempo de trabalho, assim como o era no surgimento das primeiras normas que procuraram estabelecer limites à obtenção do lucro empresarial.
Francisco Trillo[2], estudando os objetivos da normatização da jornada de trabalho, afirma que a relação entre o tempo de trabalho e o lucro empresarial é a quinta-essência do processo de produção capitalista. Daí existir uma “demanda empresarial do maior tempo de trabalho possível”. Como se sabe, a busca por maior lucro empresarial propiciou o surgimento de jornadas extenuantes de trabalho, as quais motivaram, “através da luta do movimento obreiro, a fixação progressiva de uma regulação do tempo de trabalho que albergasse em seu código genético, entre outros e fundamentalmente, o objetivo da proteção à saúde dos trabalhadores”.
Não se pode olvidar que o trabalhador não deixa de ser pessoa quando entrega parte de seu tempo de vida ao empregador, para que seja possível a prestação dos serviços pactuados no contrato de trabalho. É dizer, o trabalhador vende sua força de trabalho, física e/ou intelectual, porém não perde sua condição humana. Por isso, o tempo de trabalho não pode impedir à pessoa o desfrute de seus direitos, tampouco lhe impedir o desenvolvimento de sua personalidade. Por isso se fala tanto hoje em dia, na Espanha, em conciliação da vida pessoal, familiar e laboral.
Em outras palavras, o trabalhador trabalha “para ganhar a vida”, para obter o numerário suficiente “com o que comprar tudo aquilo que necessita e que é produzido por outros. Não obstante, este fim primário do trabalho na civilização moderna não exclui que o trabalhador possa também se interessar por ele próprio ou o que goste, obter satisfações pessoais etc.”[3] (destaque no original).
É dizer, se a pessoa se ocupa tanto do trabalho que não lhe sobra o tempo necessário ao desenvolvimento de suas atividades pessoais, ademais de sua vida familiar – também a possibilidade de participar da vida social, comunitária, sindical etc., inclusive de melhorar seu grau de conhecimento através do estudo, até mesmo para a sua formação profissional –, por certo que não terá nenhuma possibilidade de exercer seu direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade.
De modo que o trabalho não pode ser o centro do universo. É necessário promover uma filosofia da vida. Em definitivo, se deve “trabalhar para viver” e não “viver para trabalhar”. A propósito, adverte-se que no momento atual o excesso de trabalho, mais precisamente a excessiva jornada de trabalho, tem sido um grave fator de risco de acidentes e doenças do trabalho, pois os trabalhadores estão “vivendo para trabalhar”[4] e não o contrário, questão que será analisada na sequência deste artigo.
Neste passo se torna necessária uma abordagem sobre a evolução histórica da normatização do tempo de trabalho, de modo a propiciar a devida proteção a bens jurídicos tão importantes para o trabalhador, como a saúde laboral e os direitos de personalidade.

2 Aspectos históricos da luta pela limitação da jornada de trabalho
Como se sabe, a Revolução Industrial, no final do séc. XVIII e início do séc. XIX, ainda que tenha produzido uma história de êxito incontestável e progresso fantástico, também produziu uma “segunda história”. Esta história não comentada se refere ao aumento intensivo e extensivo da jornada de trabalho, à incorporação das mulheres e crianças à força de trabalho industrial, à expulsão dos trabalhadores das terras aonde viviam e trabalhavam, à precarização das condições de trabalho etc. Houve, assim, à margem do progresso do capitalismo, uma incontestável “epidemia da pobreza”, no período de instalação do modelo capitalista de produção[5].
Por isso Karl Marx, em sua obra clássica O Capital, narra inúmeros trechos dos relatórios oficiais de saúde pública inglesa, tratando sobre os efeitos negativos do martírio de jornadas de trabalho de até 18 horas, inclusive para mulheres e crianças, do trabalho noturno, em regime de turnos de revezamento, aos domingos, sem férias e sem nenhuma garantia trabalhista. Marx[6] faz um minucioso estudo dos ramos da indústria inglesa nos quais não havia limites legais de jornada de trabalho, narrando situações desumanas de exploração dos trabalhadores, sobretudo das crianças. Houve declarações de crianças de sete anos que trabalhavam 15 horas por dia. E no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito, de 13 de junho de 1863, um médico denunciava:
Como classe, os trabalhadores de cerâmica, homens e mulheres, [...] representam uma população física e moralmente degenerada. São em regra franzinos, de má construção física, e freqüentemente têm o tórax deformado. Envelhecem prematuramente e vivem pouco, fleumáticos e anêmicos. Patenteiam a fraqueza de sua constituição através de contínuos ataques de dispepsia, perturbações hepáticas e renais e reumatismo. Estão especialmente sujeitos a doenças do peito: pneumonia, tísica, bronquite e asma.
E a principal causa de tantas doenças era a extenuante carga de trabalho.
Com efeito, contam os historiadores que durante a Revolução Industrial e depois dela houve extensas e extenuantes jornadas de trabalho, permitidas pela falsa liberdade, bem como pela noção de igualdade formal, razão pela qual se assegura que “o sistema de liberdade sem restrições e do individualismo jurídico impuseram ao empregado, sem distinção de idade ou sexo”, as extensas jornadas de trabalho de 15 ou 16 horas por dia. Porém, foi assim que teve início a luta humana pela diminuição da jornada de trabalho, que foi considerada “a luta humana pela vida e a luta por uma vida humana”[7]. Por isso se afirma que a jornada de trabalho tem sido historicamente uma reivindicação chave dos trabalhadores.
Com efeito, violentas greves ocorridas na Grã Bretanha, de 1833 a 1847, resultaram na aprovação, pelo Parlamento, da lei das 10 horas, pela qual se havia lutado tanto tempo[8]. A Lei de 1847 foi a primeira lei geral limitadora da jornada de trabalho, fixada em 10 horas diárias para as indústrias têxteis da Grã Bretanha.
Depois dessa conquista, os operários ingleses passaram a lutar pela fixação da jornada em oito horas diárias, cantando o seguinte estribilho: “Eigth hours to work; Eigth hours to play; Eigth hours to sleep; Eigth shillings a day”. Essa luta se intensificou a partir de 1866, na Grã Bretanha e nos Estados Unidos da América, com a constituição da “Associação Internacional dos Trabalhadores” – conhecida como a Primeira Internacional. E em 1º de maio de 1886 se realizou uma manifestação de trabalhadores nas ruas de Chicago, com a finalidade de reivindicar a redução da jornada de trabalho para oito horas diárias, dando início a uma greve geral nos EUA[9].
Anos depois, já durante a Primeira Guerra Mundial os sindicatos começaram a se mobilizar para que o futuro Tratado de Paz contivesse um estatuto com normas de proteção ao trabalhador. E em 1916 foi aprovada em Leeds (Grã Bretanha) uma resolução por representantes de organizações sindicais, a qual constitui a essência da Parte XIII do Tratado de Versalhes, pela qual se criou a OIT[10]. A criação da OIT foi um marco na proteção dos direitos dos trabalhadores, em nível internacional.
O grande jurista mexicano Mario De La Cueva[11] já afirmava, em 1938, que a Parte XIII do Tratado de Versalhes se constituiria num mínimo de garantias internacionais para a classe trabalhadora. E dizia que, ademais da declaração internacional dos direitos mínimos dos trabalhadores, era de se destacar a norma do art. 427 do Tratado, a qual assinala que “o princípio diretor do direito internacional do trabalho consiste em que o trabalho não deve ser considerado como uma mercadoria ou um artigo de comércio”. Aí se encontra a essência do princípio da proteção.
Finalmente, a OIT, na primeira reunião da Conferência Internacional do Trabalho, ainda em 1919, aprovou a Convenção núm. 1, fixando a jornada máxima de oito horas diárias e 48 horas semanais, fazendo restrições ao trabalho extraordinário. Então, “não é por acaso que a primeira convenção internacional da OIT fosse a Convenção sobre as Horas de Trabalho na Indústria (convenção núm. 1, do ano de 1919), que já estipulava que o tempo de trabalho diário não poderia superar as oito horas diárias nem as 48 semanais”[12].
Procurava-se dar, assim, uma resposta à gravíssima questão social, “expressão que designa o complexo de problemas políticos e sociais originados no mundo do trabalho na fase inicial do liberalismo e da industrialização”, que foi se agravando até que nos albores da Primeira Guerra Mundial estava exigindo intensas reformas sociais, para a preservação da própria estrutura social de então. Daí que a questão social ocupa um lugar importante no processo histórico de aparecimento do Direito do Trabalho como uma disciplina autônoma[13].

3 Os fundamentos da normatização da jornada de trabalho
Como se vê, a luta histórica pela redução da jornada de trabalho tem acompanhado a própria trajetória do Direito do Trabalho.
Com efeito, durante um largo período da história da humanidade não houve limites específicos às jornadas de trabalho, já que por muitos séculos sua delimitação era regida pelo mecanismo das “leis naturais”. Foi ao final do séc. XIX e principalmente no início do séc. XX que os estudos científicos demonstraram a necessidade de instituição de descansos e de tempo livre para a preservação dos direitos fundamentais do trabalhador, o que tem uma justificação sob tríplice aspecto: 1º) fisiológico; 2º) moral e social; e 3º) econômico[14].
Arnaldo Süssekind[15] pontifica que os fundamentos para a limitação do tempo de trabalho são os seguintes:
a) de natureza biológica, pois que visa combater os problemas psicofisiológicos oriundos da fadiga e da excessiva racionalização do serviço;
b) de caráter social, pois que possibilita ao trabalhador viver, como ser humano, na coletividade à qual pertence, gozando dos prazeres materiais e espirituais criados pela civilização, entregando-se à prática de atividades recreativas, culturais ou físicas, aprimorando seus conhecimentos e convivendo, enfim, com sua família;
c) de índole econômica, pois que restringe o desemprego e acarreta, pelo combate à fadiga, um rendimento superior na execução do trabalho.
No que se refere ao primeiro desses fundamentos, os aportes da Fisiologia têm demonstrado satisfatoriamente a necessidade da limitação do tempo de trabalho, com critérios puramente científicos. “De fato, cientistas verificaram que o organismo humano sofre desgastes quando se põe em atividade, queimando as energias acumuladas numa maior proporção”. Os fisiologistas têm descrito, com detalhes, o processo pelo qual a fadiga se instala insidiosamente no organismo humano quando se desenvolve uma atividade prolongada.
A perda de oxigenação do sangue, o aumento de sua taxa hidrogênica, a formação excessiva de ácido láctico e de CO3H2 são alguns dos fatores que concorrem para a formação das toxinas da fadiga. A acidemia que se forma excita a respiração e aumenta a ventilação pulmonar produzindo os sintomas subjetivos de mal-estar ou dispinéia[16].
Com efeito, o esforço adicional, como ocorre, por exemplo, no trabalho constante em horas extraordinárias, aciona o consumo das reservas de energia da pessoa e provoca o aceleramento da fadiga, que pode deixá-la exausta ou esgotada[17].
Ademais, se não há o descanso necessário para a recuperação da fadiga, esta se converte em fadiga crônica, o que pode levar a doenças que conduzem à incapacidade ou inclusive à abreviação da morte. Daí que o excesso de tempo de trabalho deságua no surgimento de doenças ocupacionais e inclusive de acidentes do trabalho, o que pode levar à morte do trabalhador. E não é somente a fadiga muscular que desencadeia o problema de saúde, pois a continuidade do uso dos músculos extenuados conduz à irritação do sistema nervoso central. Finalmente, a continuidade desta “operação” produz tamanho desgaste que dá origem à fadiga cerebral, com as suas consequências perniciosas ao organismo humano[18].
Por isso se tem verificado um aumento considerável das doenças mentais dos trabalhadores, submetidos cada vez mais a uma maior carga de trabalho e num tempo excessivo. Pesquisas realizadas têm revelado o crescente índice de estresse, sobretudo a partir da década de 1990, quando houve grandes mudanças no sistema organizacional das empresas, sendo que esta reestruturação produtiva tem provocado ameaças de dispensa dos trabalhadores, ocasionando uma sensação de insegurança, contribuindo para criar uma ansiedade relacionada ao trabalho.
Não obstante, não é apenas o aspecto fisiológico que se deve observar, pois há outro tão importante como este, que diz respeito à preservação da dignidade da pessoa humana do trabalhador. Há, portanto, um aspecto moral para justificar a limitação temporal do trabalho. É que o trabalhador tem legitimamente direito a desfrutar de uma vida pessoal, fora da vida profissional, na qual possa cumprir sua função social, desenvolvendo-se intelectual, moral e fisicamente, bem como o direito a participar dos benefícios da cultura e da civilização contemporânea. E não se pode dissociar a vida pessoal da vida profissional do trabalhador se não se lhe concede um tempo livre, razoável, a fim de que tenha a oportunidade de conciliar sua vida pessoal, familiar e laboral.
Destarte, há fundamentos cientificamente comprovados para a limitação da jornada de trabalho, sendo os mais importantes o combate à fadiga e o combate ao estresse laboral para a proteção da saúde do trabalhador. Compreendendo-se referidos fundamentos fica mais fácil entender porque não se pode permitir extensas jornadas de trabalho e, por outro lado, qual é o significado e a necessidade dos períodos de descanso.

4 A flexibilização da jornada de trabalho na legislação espanhola e brasileira
Conquanto inconteste a conclusão anterior, as grandes mudanças levadas a efeito na organização das empresas, sobretudo a partir da década de 1990, com uma intensa reestruturação do sistema produtivo e uma forte flexibilização das relações trabalhistas, principalmente quanto à jornada de trabalho, têm provocado um aumento considerável do estresse laboral, bem como de inúmeras doenças do trabalho. Tudo isso conduz à conclusão de que há uma necessária relação entre a limitação do tempo de trabalho e a saúde dos trabalhadores. Isto quer dizer que o trabalho em condições precárias, principalmente em jornadas extensas ou sem as pausas adequadas, deságua em maior taxa de acidentes trabalhistas, lato sensu.
No entanto, o estudo dos efeitos da jornada de trabalho excessiva no desfrute dos direitos fundamentais dos trabalhadores, sobretudo do direito à saúde, necessita ter em conta os dois aspectos da ordenação do tempo de trabalho: o aspecto quantitativo, que diz respeito a sua “duração” (quantidade de tempo de trabalho), assim como o chamado de qualitativo, que se refere à “distribuição” da jornada ao longo do dia, da semana, do mês ou inclusive do ano, na perversa anualização do tempo de trabalho.
Com efeito, hoje em dia a vertente qualitativa da jornada de trabalho vai adquirindo cada vez maior importância, não sendo mais suficiente a tradicional classificação do tempo de trabalho em jornada ordinária, horas extraordinárias e jornadas especiais. De modo que assume grande relevo a análise de outras categorias relacionadas ao tema, como a prorrogação derivada dos acordos de compensação (banco de horas), o tempo de disponibilidade ou à disposição do empregador, as horas de presença, as horas de espera – veja-se a recente legislação do motorista profissional – e tantas outras.
Ademais, há que se dar atenção especial a uma dimensão do tempo de trabalho que não tem sido objeto de maiores e melhores estudos por parte da doutrina: o aumento considerável da produtividade dos trabalhadores, com o progresso da tecnologia, mas principalmente pelo aumento do ritmo de trabalho. É dizer, as empresas estão exigindo cada vez mais dos trabalhadores uma produtividade crescente, numa intensificação do trabalho que pode ser equiparada às exigências do período obscuro da Revolução Industrial. Pois bem, o fator produtividade “é absolutamente determinante como terceiro vértice da secular dialética entre empregadores e trabalhadores, que não pode ser reduzida ao binômio jornada/salário”[19]. Esse problema também está relacionado ao aspecto qualitativo da jornada de trabalho.
Nesse contexto, cabe apontar que desde a década de 1980 e, sobretudo a partir da de 1990, a Espanha tem promovido uma forte flexibilização das normas de proteção aos direitos básicos dos trabalhadores, acompanhando, por certo, uma tendência dos países do primeiro mundo, com claras repercussões nos países em desenvolvimento.
Quando da reforma de seu Estatuto dos Trabalhadores, levada a efeito pelo Real Decreto Legislativo n. 1/1995 – que incorpora a Lei n. 11/1994, o pontapé inicial da reforma –, propôs-se uma revisão do sistema de relações trabalhistas, presidida em grande medida pelo critério da flexibilidade, com o argumento da necessária adaptação dos recursos humanos às circunstâncias produtivas das empresas, principalmente em termos de ordenação do tempo de trabalho. “Os objetivos, valorados em termos de competitividade e garantia de conservação dos postos de trabalho, são os argumentos que, desde as concepções legais, fundamentam o recurso à flexibilidade como critério inspirador da reforma nessa matéria”[20].
Por isso, Valdéz Dal-Ré[21] aponta com maestria “que o termo flexibilidade, aplicado no âmbito dos sistemas de relações laborais, tem se convertido no Leviatã das sociedades pós-industriais”. Prados de Reyes[22] já havia destacado que a revisão do sistema de relações laborais na Espanha foi presidida “pelo critério da flexibilidade e a capacidade de adaptação dos recursos humanos às circunstâncias produtivas da empresa”, sendo que a ordenação do tempo de trabalho tem sido um dos instrumentos mais significativos de tal flexibilização.
Não obstante, o caminho seguido pela Espanha foi demasiado extenso, eis que fez desaparecer o limite da jornada diária de trabalho, a maior conquista dos trabalhadores de todos os tempos, comemorada ainda no início do séc. XX (Convenção n. 1 da OIT). É certo que já havia uma relativa flexibilidade neste aspecto, com a permissão de realização de horas extras e também com a autorização de compensação (semanal) de horário de trabalho. No entanto, a extensão deste regime de compensação a períodos de referência superiores ao semanal, em uma escala ampliada, até que foi alcançada, finalmente, a referência anual – a anualização do tempo de trabalho –, constitui verdadeira negação daquela conquista histórica.
Ademais, para tais compensações havia um limite diário, de modo a evitar abusos por parte dos empregadores na exigência de trabalho além do ordinário. Na Espanha, havia um limite de nove horas diárias de trabalho efetivo, “como um limite de ordem pública e indisponível pelas partes”, que deveria ser respeitado por toda negociação coletiva sobre distribuição irregular de horários de trabalho. Ocorre que a Lei n. 11/1994 fez desaparecer tal limite, de modo que, a partir daí, “a referência das nove horas ordinárias de trabalho efetivo já não tem um caráter de ordem pública”. Portanto, agora são as partes, em atenção ao princípio da autonomia da vontade, individual ou coletiva, que determinam a duração da jornada de trabalho, como expressa o art. 34 do ET – Estatuto dos Trabalhadores –, desde que se observe o limite máximo de 40 horas semanais de trabalho efetivo, em média, na contagem anual, bem como o descanso mínimo de 12 horas entre jornadas (§ 3º do art. 34)[23].
Assim, na Espanha, que tem levado a flexibilização da jornada de trabalho às últimas consequências, não há mais limite diário, fato que tem dado aos períodos de descanso um significado extraordinário. E, quanto ao intervalo intrajornada, o art. 34.4 do ET estabelece que apenas nas jornadas diárias continuadas de mais de seis horas é que será necessário um período de descanso “de duração não inferior a quinze minutos”.
Ocorre que essa disciplina legal possibilita que o trabalhador se dedique ao trabalho por até 66 horas semanais (respeitado o descanso de um dia e meio, na Espanha) em certos períodos do ano, o que é um verdadeiro absurdo. Por exemplo, pode-se exigir do trabalhador que se ative em 12 horas diárias – em respeito ao descanso mínimo de 12 horas entrejornadas – durante 17 semanas (quatro meses), cuja somatória alcança a impressionante cifra de 1.122 horas. Ocorre que se fosse respeitada a jornada semanal de 40 horas, em tal período o trabalhador não teria trabalhado mais do que 680 horas. Isso permite a conclusão de que nesse período de referência o trabalhador pode chegar a trabalhar 65% a mais do que a jornada normal. Depois, o empregador promoverá a compensação do excesso absurdo quando melhor lhe aproveite.
Esta situação é ainda pior nos contratos temporários. Por isso um tribunal, na Espanha, decidiu que não se pode permitir que a convenção coletiva faça uma distribuição irregular da jornada compreendida em dois períodos de seis meses cada um. Isso porque, em dois contratos temporários de seis meses, o trabalhador se ativaria em 56 horas por semana em cada um deles, praticamente duplicando a jornada legal, que é de 1.826,45 horas por ano[24]. Ademais, se o trabalhador mantém dois contratos de trabalho temporários por ano, cada um de seis meses, por exemplo, com uma jornada de 66 horas semanais e sem compensação, isso resultaria numa jornada anual de mais de 3.000 horas (66 horas x 48 semanas = 3.168 horas anuais), limite acima do qual há um grave risco de morte por excesso de trabalho, como tem considerado a OIT, nos estudos a respeito do karoshi.
No Brasil, como se sabe, há um limite de oito horas diárias de trabalho, limite este que é reduzido para seis horas diárias no trabalho em turnos ininterruptos de revezamento (art. 7º, incisos XIII e XIV, da CR/88). Assim, a única maneira de se prorrogar diariamente a jornada de trabalho, autorizada pela própria Constituição, é a permissão de compensação de horários, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho. Ocorre que essa compensação, já prevista na CLT desde 1943, era apenas e tão somente a efetuada por meio do módulo semanal.
Não obstante, a flexibilização que vem dominando o cenário europeu e, sobretudo, o espanhol, atravessou o Atlântico e veio aportar em terras brasileiras. Assim é que o art. 6º da Lei n. 9.601/98, em vigor desde 22 de janeiro de 1998, promoveu a alteração do § 2º do art. 59 da CLT, que passou a permitir a perversa compensação quadrimestral de horários, denominada de “banco de horas”. Como se não bastasse, finalmente foi adotada pelo Brasil a ainda mais perversa compensação, a anual, segundo a qual o excesso de horas trabalhadas pode ser objeto de compensação no período máximo de um ano, desde que seja observado o limite máximo de dez horas diárias. Ficou estabelecido, assim, o cômputo anual da jornada de trabalho também no Brasil.
Entretanto, parte da doutrina brasileira, com reflexos na jurisprudência, tem rechaçado tal instituto, porque o denominado “banco de horas”, que passou a ser objeto de negociação coletiva em diversas categorias profissionais e econômicas, apresenta-se, em verdade, como um completo desvirtuamento do instituto da compensação. Permitir que o empregador exija trabalho suplementar dos empregados durante vários meses do ano, ou a faculdade de compensar a “sobrejornada” com a redução do horário de trabalho em outros dias – quase sempre da maneira que melhor lhe convier –, significa, simplesmente, a transferência dos riscos da atividade econômica para o trabalhador, em manifesta violação da norma de ordem pública prevista no caput do art. 2º da Consolidação. A toda evidência, o capitalista exigirá a prestação de horas suplementares nos períodos de “pico” de produção ou de vendas e as compensará nos períodos de baixa produtividade ou de escassez nas vendas.
De tudo isso resulta que o trabalhador terá duplo prejuízo com o chamado “banco de horas”: primeiro, porque prestará inúmeras horas extras ou suplementares sem receber o adicional correspondente; segundo, porque essa prestação continuada de horas extras ou suplementares certamente afetará a sua saúde. Não resta, portanto, alternativa que não seja a de acusar a flagrante inconstitucionalidade da Medida Provisória n. 2.164-41, de 24 de agosto de 2001, a qual deu nova redação ao § 2º do art. 59 da CLT, para permitir o banco de horas no período de um ano. Neste sentido, Souto Maior[25] assevera que, por mais que se queira ver no “banco de horas” uma boa intenção,
[…] é irresistível considerá-lo inconstitucional, por ser um incentivo à utilização do trabalho em jornada extraordinária, contrariando o ideal maior de favorecer o pleno emprego, fixado como princípio da ordem econômica no inciso VIII do art. 170 da Constituição Federal.
A permissão do banco de horas vem a se tratar, pois, de uma violação irresponsável da Constituição, tanto à norma particular a respeito da compensação (semanal) quanto aos princípios que são a base da sociedade brasileira (art. 1º da CR).

5 Os resultados perversos na saúde dos trabalhadores

Num profundo estudo sobre a influência do excesso de tempo de trabalho na segurança e na saúde dos trabalhadores, Anne Spurgeon[26] asseverou que a preocupação central em relação ao número de horas trabalhadas é o desenvolvimento da fadiga e, associado a isso, do estresse ocupacional, sendo que a exposição cumulativa à fadiga e ao estresse desemboca em problemas de doenças mentais e cardiovasculares. A situação é ainda mais grave quando os trabalhadores são submetidos rotineiramente ao regime de horas extraordinárias.
O estudo dessa autora revela que os trabalhadores da indústria, no Japão, quando se ativaram em horas extras, tiveram aumentados os riscos de problemas de saúde mental. Com efeito, é impressionante o número de morte súbita e suicídio naquele país, na ocorrência do karoshi – morte súbita por excesso de trabalho –, sendo que houve 1.257 casos oficiais de suicídio relacionado ao trabalho, já em 1996. Um estudo de 203 casos de karoshi constatou que dois terços deles ocorreram porque os trabalhadores trabalhavam regularmente mais de 60 horas por semana, mais de 50 horas extras por mês ou mais da metade de suas férias antes dos ataques cardiovasculares fatais.
O karoshi se trata de um grande problema social no Japão, porque os japoneses – segundo estudo da década de 1990 – trabalham muito mais horas que os trabalhadores dos países industrializados ocidentais. O karoshi é, em verdade, resultado de um modo de gestão empresarial, o chamado modelo de gestão japonesa – vulgarizado no Ocidente com a expressão toyotismo –, que hoje em dia está difundido em praticamente todos os países, no chamado posfordismo. Este modelo é singularizado pela busca de cada vez maior redução do custo do trabalho, apresentando como característica no âmbito laboral a promoção da individualização das relações laborais ou, dito de outra maneira, a eliminação dos valores coletivos dos trabalhadores. Por isso especialistas no tema, como Dejours, têm afirmado que a avaliação individualizada do rendimento e a exigência de qualidade total, duas das principais características do toyotismo, provocam uma sobrecarga de trabalho que conduz a uma explosão de doenças, dentre as quais o burn out, o karoshi e os transtornos músculo-esqueléticos.
Com respeito ao karoshi, veja-se sua extensão:
O termo é compreensivo tanto das mortes ou incapacidades laborais de origem cardiovascular devidas à sobrecarga de trabalho (acidente cerebrovascular, infarto do miocárdio, insuficiência cardíaca aguda,…) como de outras mortes súbitas (por exemplo, as relacionadas com a demora no tratamento médico por causa da falta de tempo livre para consultas) e também dos suicídios atribuídos ao excesso de trabalho. Em sentido estrito, recebe o nome de karo-jisatu ou suicídio por excesso de trabalho […] Em 2006 foram reconhecidas no Japão 560 indenizações por danos à saúde (213 delas foram por falecimentos) ligados à sobrecarga de trabalho, incluindo tanto as doenças cerebrovasculares como os distúrbios mentais (incluindo a morte por suicídio). É relevante precisar que 40% dos trabalhadores afetados eram menores de 30 anos. Dado o caráter extremamente restritivo destes reconhecimentos se tem estimado que na realidade o karoshi (e o karo-jisatu) ocasionam a morte de 10.000 trabalhadores anualmente[27].




[1] (*) José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva é Juiz do Trabalho, Titular da 2ª Vara do Trabalho de Araraquara (SP), Gestor Regional (1º grau) do Programa de Prevenção de Acidentes do Trabalho instituído pelo Tribunal Superior do Trabalho, Mestre em Direito das Obrigações pela UNESP/SP, Doutor em Direito Social pela Universidad Castilla-La Mancha (Espanha), Membro do Conselho Técnico da Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Subcomissão de Doutrina Internacional), Professor universitário e de cursos jurídicos em Ribeirão Preto (SP).
(**) Palestra proferida no Ciclo de Palestras de Direito do Trabalho e Previdência Social, na Faculdade de Direito da USP, campus de Ribeirão Preto, no dia 8 de novembro de 2012.
[2] TRILLO PÁRRAGA. F. J. La construcción social y normativa del tiempo de trabajo: identidades y trayectorias laborales. Valladolid: Lex Nova, 2010,  p. 30-31.
[3] MONEREO PÉREZ, J. L.; GORELLI HERNÁNDEZ, J. Tiempo de trabajo y ciclos vitales: Estudio crítico del modelo normativo. Granada: Comares, 2009,  p. 1.
[4] Urrutikoetxea Barrutia, M.Vivir para trabajar: la excesiva jornada de trabajo como factor de riesgo laboral”. Gestión Práctica de Riesgos Laborales, n. 77, dezembro de 2010, p. 34-41.
[5] GOMES MEDEIROS, J. L. A economia diante do horror econômico. 2004, 204 p. Tese (Doutorado em Economia). Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004, p. 15.
[6] MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. 22. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 283-304.
[7] GOMES, Orlando e GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 275.
[8] MARX, K. O capital: crítica da economia política, p. 324-326.
[9] SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito internacional do trabalho. 3. ed. atual. e com novos textos. São Paulo: LTr, 2000, p. 87. No dia 3 de maio houve confronto com a polícia, terminando com a morte de alguns manifestantes, fato que levou a uma nova manifestação em 4 de maio, como protesto pelos acontecimentos do dia anterior, ocasião em que a polícia começou a disparar contra a multidão de manifestantes, matando doze pessoas e ferindo dezenas delas. Três anos mais tarde, a Segunda Internacional Socialista decidiu acolher proposta de convocar anualmente uma manifestação com o objetivo de luta pela fixação das oito horas de trabalho diário, sendo que a data escolhida foi o Primeiro de Maio, em homenagem às lutas sindicais de Chicago.
[10] SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito internacional do trabalho, p. 95-99.
[11] DE LA CUEVA, M. Derecho Mexicano del Trabajo. México: Librería de Porrúa, 1938, p. 225-228.
[12] CHACARTERGUI JÁVEGA, C. “Tiempo de trabajo, racionalidad horaria y género: un análisis en el contexto europeo”. Relaciones laborales, n. 19, ano XXII, Madrid, outubro de 2006, p. 96.
[13] MARTÍN VALVERDE, A.; RODRÍGUEZ-SAÑUDO GUTIÉRREZ, F.; GARCÍA MURCIA, J. Derecho del Trabajo. 15. ed. Madrid: Tecnos, 2006, p. 67-69.
[14] GOMEs, Orlando e GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho, p. 270.
[15] SÜSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de Direito do Trabalho. v. 2, 16. ed. atual. por Arnaldo Süssekind e João de Lima Teixeira Filho. São Paulo: LTr, 1996, p. 774.
[16] GOMEs, Orlando e GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho, p. 270.
[17] OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 4. ed. São Paulo: LTr, 2002, p. 159.
[18] GOMES, Orlando e GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho, p. 270-271.
[19] ALARCÓN CARACUEL, M. R. “La jornada ordinaria de trabajo y su distribución”. En: APARÍCIO TOVAR, J. y López Gandía, J. (Coord.). Tiempo de trabajo. Bomarzo, Albacete, 2007, p. 41-43.
[20] PRADOS DE REYES, F. J. “La ordenación del tiempo de trabajo en la Reforma del Estatuto de los Trabajadores”. Relaciones laborales, n. 8, ano 12, Madrid, 23 de abril de 1996, p. 12.
[21] VALDÉZ DAL-RÉ, F. “La flexibilidad del tiempo de trabajo: un viejo, inacabado y cambiante debate”. Relaciones laborales, n. 2, ano 15, Madrid, 23 de janeiro de 1999, p. 1.
[22] PRADOS DE REYES, F. J. “La ordenación del tiempo de trabajo en la Reforma del Estatuto de los Trabajadores”, p. 12.
[23] FITA ORTEGA, F. Límites legales a la jornada de trabajo. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 41-42.
[24] TRILLO Párraga, F. J. La construcción social y normativa del tiempo de trabajo: identidades y trayectorias laborales, p. 69.
[25] SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. O direito do trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: LTR, 2000, p. 329.
[26] SPURGEON, A. Working time: its impact on safety and health. OIT y Korean Occupational Safety and Health Research Institute, Genebra, 2003.
[27] Urrutikoetxea Barrutia, M.Vivir para trabajar: la excesiva jornada de trabajo como factor de riesgo laboral”, p. 36-37. O autor relata o suicídio de um jovem de 23 anos, resultado de uma depressão originada do sobre-trabalho; o trabalhador temporário realizava jornadas de 250 horas mensais, trabalhando 11 horas diárias e inclusive 15 dias seguidos sem descanso. Cita, ainda, este autor a estimativa de 5.000 suicídios anuais no Japão, derivados de depressões por excesso de trabalho. Ibidem. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário