sexta-feira, 11 de outubro de 2013

A flexibilização da jornada de trabalho e seus reflexos na saúde do trabalhador - Parte 2

*Este artigo foi publicado na Revista LTr, em fevereiro de 2013, p.181-192, bem como em outras revistas especializadas.

A FLEXIBILIZAÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO E SEUS REFLEXOS NA SAÚDE DO TRABALHADOR


PARTE 2

José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva[1]



[1] (*) José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva é Juiz do Trabalho, Titular da 2ª Vara do Trabalho de Araraquara (SP), Gestor Regional (1º grau) do Programa de Prevenção de Acidentes do Trabalho instituído pelo Tribunal Superior do Trabalho, Mestre em Direito das Obrigações pela UNESP/SP, Doutor em Direito Social pela Universidad Castilla-La Mancha (Espanha), Membro do Conselho Técnico da Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Subcomissão de Doutrina Internacional), Professor universitário e de cursos jurídicos em Ribeirão Preto (SP).
(**) Palestra proferida no Ciclo de Palestras de Direito do Trabalho e Previdência Social, na Faculdade de Direito da USP, campus de Ribeirão Preto, no dia 8 de novembro de 2012.


O jornal Japan Press Week noticiava, em 28/3/1998, a morte de um jovem programador de computador devido ao excesso de trabalho, pois na sentença do Tribunal Distrital de Tóquio ficou consignado que o tempo médio de trabalho anual deste jovem era superior a 3 mil horas, sendo que nos três meses anteriores à sua morte ele chegou a trabalhar 300 horas por mês, já que estava trabalhando no desenvolvimento de um sistema de software para bancos. Na edição de 4/4/1998 o citado jornal relatava outro caso de um jovem que morreu de ataque do coração devido ao excesso de trabalho, já que nas duas semanas anteriores à sua morte trabalhou em média 16 horas e 19 minutos por dia[1].
Não obstante, essa situação não é um “privilégio” do Japão, pois estudos das décadas de 1960 e 1970 revelaram que nos Estados Unidos as doenças cardíacas eram frequentes nos trabalhadores que trabalhavam mais de 60 horas por semana. Ademais disso, estudos verificaram que os motoristas de caminhão, que trabalham 11 ou 12 horas por dia, tiveram um aumento impressionante dos casos de fadiga e de problemas músculo-esqueléticos, resultantes da postura prolongada em condições precárias ao dirigir sentados em pelo menos 50% de sua jornada, além do aumento das doenças do coração. Muito importante também um estudo realizado na Alemanha, no qual se constatou, na análise de 1,2 milhões acidentes do trabalho, que o risco de acidente aumentou exponencialmente depois da nona hora de trabalho, com um percentual três vezes maior nas jornadas de 16 horas de trabalho diárias. A conclusão, como não poderia deixar de ser, é a de que trabalhar regularmente mais de 50 horas por semana aumenta o risco de doenças, especialmente as cardiovasculares[2].
Mais recentemente, a morte por excesso de trabalho tem ocorrido em larga escala nas relações laborais dos trabalhadores estrangeiros irregulares ou “sem papéis”, na Europa, ao que a Comunidade Europeia tem feito “vista grossa”. A morte por excesso de trabalho, na atualidade, é um fenômeno que “tem se estendido a outros países asiáticos como a China”, país em que esse tipo de morte “se denomina guolaosi e se tornou notícia em todo o mundo “o suicídio por sobrecarga de trabalho de nove empregados jovens da empresa que produz e monta o IPad e outros produtos da empresa Apple”[3].
No Brasil, nos anos de 2005 e 2006 houve várias mortes de cortadores de cana-de-açúcar, no Estado de São Paulo, o mais rico do país, como noticiaram os jornais, o que inclusive deu lugar à investigação da Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Trabalho[4]. As mortes foram atribuídas ao excesso de trabalho. Ainda que as investigações estejam em curso, há mais que indícios – e sim uma forte presunção – de que as mortes derivam da fadiga provocada pelo excesso de atividade laborativa. Se há estudos comprovando que para a colheita de dez toneladas de cana-de-açúcar por dia o trabalhador desfere cerca de 10.000 mil golpes de podão, mostra-se bastante evidente que as mortes se relacionam com o excesso de trabalho, pois os cortadores que morreram haviam cortado 12 ou mais toneladas de cana por dia, sendo que um deles morreu depois de cortar mais de 17 toneladas de cana em um só dia.
O jornal Folha de S. Paulo noticiou, em 18 de maio de 2007, que a investigação realizada pelo Ministério Público do Trabalho da 15ª Região concluiu: “O trabalhador Juraci Barbosa, que morreu com 39 anos em 29 de junho de 2006, trabalhou 70 dias sem folga entre 15 de abril e 26 de junho. Além disso, ele cortou um volume de cana bem superior à média diária de dez toneladas nos dias que antecederam sua morte”. Os dados foram extraídos da “ficha” do trabalhador, que morreu depois de sentir-se mal em casa e ser levado ao hospital de Jaborandi. “Chama a atenção o fato de, no dia 21 de abril, ele ter cortado 24,6 toneladas de cana em apenas um dia. E no dia 28 de junho, um dia antes da morte, 17,4 toneladas”, de acordo com o médico que avaliou os documentos apresentados pela empregadora do trabalhador falecido[5].
Daí se vê que tanto o aspecto quantitativo como o qualitativo (distribuição irregular da jornada e aumento da produtividade) são importantes nessa luta pela limitação do tempo de trabalho, de modo a evitar doenças e mortes súbitas por excesso de trabalho.
Não obstante, ainda que tenha se tornado um “lugar comum” estudos sobre a relação entre tempo de trabalho e igualdade, ou entre tempo de trabalho e conciliação da vida pessoal, familiar e laboral, não se encontram estudos que busquem demonstrar de modo conclusivo a relação necessária entre tempo de trabalho, mais precisamente extensas jornadas de trabalho, e danos à saúde do trabalhador, lacuna que pretendi suplantar em minha tese de doutorado. Na tese há um estudo das estatísticas de jornadas de trabalho excessivas, bem como de acidentes do trabalho e doenças ocupacionais, na busca de se estabelecer uma relação de causa e efeito entre estes dois fatores. O objetivo, portanto, foi o de se analisar os efeitos perversos da flexibilização da jornada de trabalho na saúde laboral, mais precisamente, os sinistros laborais. Que o(a) caro(a) leitor(a) possa se interessar por esta pesquisa, a ser publicada em breve, em obra específica.
Neste espaço, por se tratar de um breve artigo, proponho-me a analisar apenas alguns dados de estatísticas brasileiras, com base no NTEP, esta excepcional ferramenta que precisa ser melhor estudada pelos atores jurídicos e demais profissionais ocupados em estabelecer parâmetros para a proteção à saúde do trabalhador.

6 Sinistralidade no Brasil – as doenças ocupacionais

Ao se confrontar os dados das jornadas mais extensas por setor da atividade econômica com os dados disponíveis a respeito de acidentes do trabalho nesses mesmos setores, tem-se uma indicação de que a duração do tempo de trabalho pode contribuir para o surgimento dos acidentes laborais e, sobretudo, das doenças do trabalho. É certo que os acidentes no ambiente de trabalho são um fenômeno multicausal[6], havendo inúmeras causas competindo para que o fato suceda. Assim, não é possível afirmar que somente as jornadas de trabalho extensas são as responsáveis pela ocorrência dos acidentes no mundo do trabalho. De outra parte, não se pode afastar essa causa como uma das mais importantes para a ocorrência do infortúnio.
O que se pretende demonstrar adiante é que, de alguma maneira, o tempo de trabalho muito além do normal ou recomendado conduz a uma grande quantidade de doenças ocupacionais, o que se mostra muito difícil de explicar na grande maioria dos países nos quais não se dispõe de dados confiáveis a respeito das doenças diretamente relacionadas ao trabalho. No Brasil, como se poderá ver na sequência, foi criado um mecanismo muito interessante para se descobrir os índices reais ou mais aproximados destas doenças, denominado Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário – o NTEP –, o qual logrou que o número de doenças ocupacionais tivesse um “aumento” de quase 1.100%.
Um dos pais desta ferramenta, Paulo Rogério Albuquerque de Oliveira[7], explica que não se pode investigar somente as doenças dos trabalhadores, já que a empresa também pode estar “enferma”. Isso porque há atividades econômicas ou setores empresariais que causam muito mais doenças do que outros. Isso precisa ser identificado para uma melhor consideração dos órgãos que se ocupam da proteção da saúde dos trabalhadores. A novidade do Nexo Técnico Epidemiológico é que ele introduz um novo paradigma, que ultrapassa a investigação do nexo técnico individual entre a enfermidade e o trabalhador, segundo os ditames da medicina do trabalho e da clínica médica. A mencionada novidade “consiste em buscar no meio ambiente de trabalho”, representado pela CNAE – Classificação Nacional de Atividade Econômica –, “os fatores condicionantes e determinantes do fenômeno mórbido a partir das múltiplas representações e dimensões, em lugar de fazê-lo na esfera do ser humano, isoladamente”. Assim se tem uma análise sob a perspectiva coletiva e não individual, pois que aquela se sobrepõe a esta, sem desconsiderá-la, no entanto. Não basta, por conseguinte, o diagnóstico a partir do CID – Código Internacional de Doenças –, pois que o meio ambiente de trabalho deve ser analisado em comparação com a variável CID. “Em suma, tem-se um aparelho metodológico que opera epistemologicamente com referenciais teóricos de tipos lógicos dedutivos e indutivos representados pelas variáveis CNAE e CID, respectivamente”. A CNAE, de tipo lógico dedutivo, “sintetiza os fatores determinantes e condicionantes do meio ambiente de trabalho e, portanto permite encontrar os enlaces de significado e conhecimento, por dedução do macro (socioeconômico e ambiental) ao micro (biológico)”. A sua vez, o CID, do tipo lógico indutivo “representa um microcosmos a partir do qual se compõe tudo o que envolve um ser humano, do elementar microorganismo ao composto socioeconômico e ambiental do ser humano”.
Com efeito, a verificação das doenças ocupacionais de acordo com as presunções derivadas do NTEP tem revelado um número expressivo de doenças ocupacionais não declaradas. As cifras são impressionantes, pois que em 2008 foram declaradas no Brasil 18.576 doenças do trabalho. Não obstante, com a verificação do NTEP, foram identificadas 202.395 doenças sem CAT[8] – Comunicação de Acidente do Trabalho –, no Brasil. Houve, assim, um aumento de 1.089,55% nas estatísticas de doenças ocupacionais, se consideradas as presumidas pelo estabelecimento do NTEP. Daí que se faz necessária uma investigação profunda destes dados para que se possa aproveitá-los da melhor maneira possível. Penso que é interessante identificar as atividades econômicas que registraram o maior índice ou a maior quantidade de doenças não declaradas e, a partir destes dados, buscar uma correlação de tais atividades ou setores empresariais com as excessivas jornadas, o objetivo central deste artigo.

6.1  As taxas de doenças ocupacionais

Em números absolutos, algumas atividades econômicas tiveram registrada a maior quantidade de doenças ocupacionais em 2008. Na análise do NTEP, a Administração Pública teve 8.922 doenças não notificadas, seguida dos hiper e supermercados com 5.478 doenças, da construção de edifícios com 4.869, do transporte de cargas com 4.430, do transporte urbano com 4.408 e do atendimento hospitalar com 4.404.
Verificando-se os casos notificados, observa-se que os bancos múltiplos declararam 2.053 doenças ocupacionais por meio de CAT, ao passo que o setor de frigoríficos de suínos e aves declarou 827 doenças e o setor de atendimento hospitalar 555 casos. Veja-se que o número de doenças não declaradas é muito superior ao das notificações, as quais são obrigatórias. Assim que, somados os casos notificados e os não declarados se tem o seguinte quadro, com mais de 4.000 doenças ocupacionais, em 2008 (quadro 1). De se notar que, somados os casos dos transportes de cargas e urbano, a quantidade chega a 9.228, maior que a quantidade de casos da Administração Pública.
Quadro 1. Total de doenças – mais de 4.000 casos –, por CNAE, em 2008
CNAE*
Não notificados
Notificados
Total
Atividade
8411
8.922
230
9.152
administração pública
4711
5.478
401
5.879
hiper e supermercados
4120
4.869
319
5.188
construção de edifícios
8610
4.404
555
4.959
atendimento hospitalar
1012
4.042
827
4.869
frigoríf. de suínos e aves
4930
4.430
219
4.649
transporte de cargas
4921
4.408
171
4.579
transporte urbano
6422
2.234
2.053
4.287
bancos múltiplos
* CNAE – Classificação Nacional de Atividade Econômica. Fonte: Base de dados Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho – AEAT 2008 – Ministério do Trabalho e Emprego; Ministério da Previdência Social. Elaboração: autor do artigo.
Não obstante, não se pode considerar somente os números absolutos nas atividades econômicas isoladas, pois isso pode conduzir o investigador a conclusões equivocadas. É suficiente a esta afirmação a consideração de que a Administração Pública, ainda que apareça em primeiro lugar na quantidade de doenças, quando se observa a quantidade de trabalhadores neste setor, tem uma taxa de sinistralidade muito baixa.
Assim que a Administração Pública tinha 21,1% do total de 39.441.566 trabalhadores formais de todos os setores das atividades econômicas do Brasil, em 2008, segundo dados do DIEESE – Departamento Intersindical de Estudos Econômicos e Socioeconômicos –, ou seja, mais de 8.300.000 empregados públicos naquele ano[9]. Se considerados todos os casos dos serviços públicos, tem-se um total de 16.179 doenças não notificadas, o que corresponde a uma taxa de somente 194,69 doenças não declaradas para cada 100.000 trabalhadores.
Ora, no setor da indústria da transformação – que abrange vários grupos da CNAE, do 10 ao 33, tantas são as atividades industriais –, houve um total de 54.259 doenças não declaradas, o que corresponde a uma taxa impressionante de 742,17 doenças não notificadas por 100.000 trabalhadores, considerando-se que este setor tinha 7.310.840 empregados em 2008, de acordo com o MTE, com base na RAIS.
Utilizando o mesmo raciocínio, nos grupos dos transportes, armazenamento e correios – do 49 ao 53 da CNAE –, houve 13.574 doenças ocupacionais não declaradas e descobertas pelo NTEP. Ocorre que nem sequer no Ministério do Trabalho e Emprego se consegue obter dados seguros sobre a quantidade de trabalhadores formais nos transportes. Porém, segundo o estudo denominado “Perfil do Trabalho Decente no Brasil”, da OIT, em 2007 houve um porcentual de 50,5% de informalidade no Brasil[10]. Considerando que essa taxa foi de 50% em 2008, é possível estimar um total de 1.800.000 trabalhadores formais no setor dos transportes naquele ano. Se assim era, a taxa de doenças não notificadas para cada 100.000 trabalhadores nos transportes foi de 754,11, sem dúvida alguma a mais alta de todos os setores das atividades econômicas (quadro 2).
Quadro 2. Taxas de doenças para 100.000 trabalhadores, em 2008
Atividades
CNAE
Doenças
Taxa de doenças
Transportes, armazen. e correios
49 - 53
13.574
754,11
Indústria da transformação
10 - 33
54.259
742,17
Construção
41 - 43
11.514
601,38
Comércio
45 - 47
29.161
398,15
Serviços em geral
55 - 82; 87 - 99
33.203
307,96
Administração pública
84 - 86
16.179
194,69
Fonte: Base de dados Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho – AEAT 2008 – Ministério do Trabalho e Emprego; Ministério da Previdência Social. Elaboração: autor do artigo.
Talvez isso tenha ocorrido por causa das excessivas jornadas de trabalho neste setor, pois todas as estatísticas revelam que o setor dos transportes é o setor no qual existem as maiores jornadas de trabalho no Brasil. Assim que em 2007 a jornada semanal média (oficial) neste setor foi de 46,2 horas. Há um estudo no qual se demonstra que a jornada média dos trabalhadores do setor de transportes era, em 2003, de 47,1 horas por semana, no Brasil. Ademais, que a jornada média dos motoristas de caminhão era de 52,6 horas semanais, naquele mesmo ano[11]. E isso pode contribuir ao surgimento de tantas e tantas doenças ocupacionais – como de fato tem ocorrido – neste setor.

6.2  Os grupos de atividades econômicas

Tudo isso demonstra que é necessário estudar a possível correlação entre doenças ocupacionais e extensas jornadas de trabalho, tendo em conta os grupos de atividades econômicas.
Quanto à indústria de alimentos e de confecção do vestuário e fabricação de calçados, ademais das excessivas jornadas – avaliação quantitativa –, há uma característica agravante que não pode ser deixada à parte, inclusive porque também integra a consideração de jornada de trabalho, em sua vertente qualitativa. Trata-se da ritmicidade excessiva exigida pela produção em série, verificada nas “linhas” (esteiras) de produção. Aqui se torna muito importante a configuração das pausas intrajornada, pois o intenso trabalho faz com que as forças físicas e mentais do trabalhador diminuam no curso da jornada de labor diária. Outro dado está relacionado à ergonomia no ambiente de trabalho. De modo que todos estes fatores contribuem para o aparecimento de doenças ocupacionais. E por isso a taxa de doenças ocupacionais no setor da indústria da transformação é a segunda mais alta no Brasil. Como já apontado, neste grande setor, que abrange 24 grupos da CNAE – do 10 ao 33 –, houve mais de 54.000 doenças não declaradas, o que corresponde a uma taxa de 742,17 doenças não notificadas para 100.000 trabalhadores (quadro 2).
Ainda investigando as taxas de sinistralidade com base no NTEP, de se pontuar o seguinte quadro: taxas de 15,68 – por 1.000 trabalhadores – na fabricação de locomotivas e vagões, de 9,76 na fabricação de equipamentos e instrumentos óticos, fotográficos e cinematográficos, de 8,57 na fabricação de caminhões e ônibus e de 6,73 nos bancos múltiplos, com carteira comercial (quadro 3).
Quadro 3. Taxa de doenças por atividade
Atividade
CNAE
Taxa de enfermidade
Fabricação de locomotivas e vagões
3031
15,68
Fabricação de equip. e instrumentos óticos, fotográficos e cinematográficos
2670
 9,76
Fabricação de caminhões e ônibus
2920
 8,57
Bancos múltiplos, com carteira comercial
6422
 6,73
Fonte: Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho – AEAT 2008 – Ministério do Trabalho e Emprego; Ministério da Previdência Social. Elaboração: autor do artigo.
Assim que, consideradas as atividades isoladamente, destacam-se três do grande setor da indústria manufatureira nos primeiros lugares, com altas taxas de enfermidade relacionada ao trabalho. Outrossim, de se considerar a alarmante taxa das instituições financeiras (bancos) – a quarta maior –, nas quais há uma previsão de jornada especial no Direito do Trabalho brasileiro – limite de seis horas diárias[12], com pausa de pelo menos 15 minutos –, a qual, não obstante, não tem sido respeitada, como demonstram as numerosas ações judiciais ajuizadas em face dos bancos. É mais que comum verificar em tais processos que os trabalhadores se ativam em mais de 6 horas por dia nesta atividade, às vezes até 8, 10 ou mais horas, num trabalho altamente repetitivo e que demanda uma intensa concentração, com somente 15 minutos de pausa para a refeição. Talvez isso ajude a explicar a referida taxa de sinistralidade nos bancos (quadro 3).
A propósito, Sadi Dal Roso[13], num estudo aprofundado sobre a intensificação do trabalho dos trabalhadores brasileiros, por ramo de atividade econômica, com base em minuciosas pesquisas realizadas junto aos trabalhadores, constata que a intensidade do trabalho é impressionante no setor bancário e financeiro, no qual 72,5% dos trabalhadores consideram que seu trabalho hoje em dia é mais intenso do que o executado na época em que começaram a trabalhar. Aí está a constatação de que um grande número de trabalhadores está se ativando em horas extras no país, especialmente nos bancos e financeiras, aonde 62,5% dos trabalhadores tem dito trabalhar mais tempo na atualidade, quando comparado com as jornadas de trabalho do início de sua atividade profissional.
A pesquisa se torna ainda mais interessante quando o autor constata que 57,2% dos trabalhadores afirma que o ritmo e a velocidade do trabalho atual são maiores que no passado. Uma vez mais, aparecem nos primeiros lugares bancos e financeiras – o segundo lugar – com 85% dos trabalhadores. Quando se lhes foi perguntado se acumulavam tarefas antes executadas por mais de uma pessoa, os trabalhadores do setor bancário e financeiro responderam positivamente em 75% dos casos. Isso é a mais clara demonstração da intensificação do trabalho dos bancários[14]. Outra forma de medir a intensidade do trabalho é a averiguação da chamada gestão por resultados, nova prática empresarial neste período posfordista. Uma vez mais, os trabalhadores do setor bancário foram os que mais se queixaram da questão “obtenção” de resultados (97,5%)[15].
Não obstante, ao se analisar os grupos de atividades econômicas, numa perspectiva mais global, observa-se que a soma de todas as atividades do grupo 10 – indústria da produção de alimentos, que tem 31 atividades – atinge um total absurdo de 23,59 casos de doenças não declaradas por 1.000 trabalhadores, com destaque para o código 1012 – frigoríficos de suínos e aves –, no qual a taxa de enfermidade é de 3,61 (quadro 4). Então, os frigoríficos que desenvolvem sua atividade utilizando somente suínos e aves, principalmente frangos, são as empresas que mais causam doenças ocupacionais em todo o grande setor da indústria alimentícia. Por isso é muito importante estudar as jornadas e as formas de sua distribuição neste ramo empresarial, no qual não se tem concedido as pausas intrajornada necessárias ao combate do estresse laboral e à prevenção da fadiga, ocasionando numerosos casos de afastamentos para tratamento de doenças.
Quadro 4. Doenças por grupo de atividade econômica
Atividade
Grupo
Taxa de enfermidade
CNAE*
Taxa de enfermidade**
Produção de alimentos
10
23,59
1012
3,61
Comércio varejista
47
8,42
4713
1,59
Vestuário e calçados
14 e 15
8,35
1539
1,47
Transportes
49
6,28
4912
2,23
* CNAE com as maiores taxas de enfermidade no grupo; ** taxa da CNAE destacada no grupo de atividade. Fonte: Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho – AEAT 2008 – Ministério do Trabalho e Emprego; Ministério da Previdência Social. Elaboração: autor do artigo.
Outrossim, a se considerar o grande grupo 47 – comércio varejista – se verifica uma soma de 8,42 casos de enfermidade por 1.000 trabalhadores, destacando-se a atividade do comércio varejista de mercadorias em geral, sem predominância de produtos alimentícios (4713), com a taxa de enfermidade de 1,59. De se registrar, igualmente, que o comércio varejista foi responsável por 68,9% de todas as doenças do grande setor do comércio – G 45 a 47 –, mais precisamente por 20.088 das 29.161 doenças não declaradas em 2008.
Na sequência, os grupos 14 e 15 – indústria do vestuário e da fabricação de calçados –, com a soma de 8,35 casos por 1.000 trabalhadores, com especial atenção para a fabricação de calçados (1539), na qual houve uma taxa de enfermidade de 1,47. Convém notar que somente a confecção de vestuário e acessórios e a fabricação de calçados e outros artefatos de couro foram as responsáveis por 13,4% de todas as doenças não declaradas do grande setor da indústria – 7.267[16] de 54.259. Aqui se verifica um problema similar ao noticiado para a indústria frigorífica, pois tanto a atividade têxtil como a de calçados são muito repetitivas, desenvolvidas em “linhas” de produção, nas quais não se pode permitir extensas jornadas de trabalho e se deve distribuir os horários de modo que o trabalhador tenha momentos de recuperação da fadiga e do estresse. Daí a importância das pausas intrajornada nesse tipo de atividade empresarial, para a proteção da saúde laboral.
Finalmente, há que se destacar, uma vez mais, os transportes terrestres, pois a soma do G 49 – que conta com somente 10 atividades – atinge 6,28 doenças não declaradas por 1.000 trabalhadores, sendo que a atividade de transporte metroferroviário (4912) tem a impressionante taxa de enfermidade de 2,23. É impressionante a quantidade de doenças não declaradas nos transportes, pois foram 4.408 casos no transporte rodoviário coletivo de passageiros municipal e em região metropolitana, 1.036 neste mesmo transporte, porém intermunicipal, interestadual e internacional, e assustadores 4.430 casos no transporte rodoviário de cargas. Somente a soma destas três atividades registra um total de 9.874 casos, 95,6% do total do subsetor de transporte terrestre, que inclui o metroferroviário.
Uma última observação: quando se analisa somente a quantidade de casos de doenças ocupacionais, a Administração Pública (8411) responde por 9.152 casos – 8.922 não declarados e 230 notificados –, sem dúvida, o número mais alto, se considerado isoladamente, como já visto. Não obstante, sua taxa de incidência de doenças por 1.000 trabalhadores é de somente 0,08, até insignificante quando comparada a outras atividades. Por exemplo, a taxa dos bancos múltiplos é de 6,73 – dado retro mencionado –, ou seja, uma taxa 84 vezes maior que a da Administração Pública. Igualmente, a taxa do abate de suínos e aves foi de 3,61, como já visto. Então, o índice de doenças ocupacionais nos frigoríficos é 45 vezes maior que na Administração. Tudo isso é muito preocupante e deve encontrar uma pronta resposta dos estudiosos da matéria.

6.3  As cidades com a maior quantidade de doenças ocupacionais

Em continuação, pretende-se fazer um estudo das cidades que apresentaram, em 2008, a maior quantidade de doenças ocupacionais não declaradas, com o intuito de investigar quais apresentaram o maior índice de sinistralidade em relação ao seu número de empregados, para, em seguida, analisar as atividades econômicas predominantes nessas cidades. A partir daí, será possível investigar se as condições de trabalho, em especial as jornadas de trabalho, têm algo a ver com essa realidade.
Assim que, analisando as estatísticas de doenças ocupacionais não declaradas do ano 2008, segundo o NTEP, verifica-se que a cidade recorde, de longe, é São Paulo, em número de doenças presumidas, ou seja, não notificadas, com 14.603 casos. Não obstante, São Paulo é a capital econômica do país, com uma população empregada consideravelmente maior – 4.489.076 empregos formais em 2008[17]. Por isso, sua taxa foi de apenas 325,3 doenças por 100.000 empregados. Na sequência surgem as cidades do Rio de Janeiro e Salvador.
Porém, o surpreendente é que, em quarto lugar, não aparece nenhuma outra capital, mas a cidade de Blumenau (SC), com 3.163 casos. Ocorre que Blumenau tinha, em 2008, tão somente 116.135 empregos devidamente anotados no registro do MTE, com base na RAIS/2008 e 2009. É assombrosa a quantidade de casos desta cidade, quando comparada com o número de empregos formais – 3.163 doenças por 116.135 trabalhadores. Fazendo a conta como sempre o faz a OIT – número de doenças do trabalho dividido entre a população afiliada (no caso, a quantidade de empregos formais), multiplicado por 100.000 –, os casos de Blumenau revelam uma taxa de 2.723,5 doenças por 100.000 empregados (quadro 5). Ora, em Florianópolis, a capital do Estado, houve somente 656 casos não declarados, para um total de 244.253 empregados, o que significa uma taxa muito menor, de 268,6 doenças por 100.000 empregados.
Isso conduz à necessidade de investigações sobre a referida realidade por especialistas da saúde pública e das condições de trabalho. Neste momento, o que se pode fazer é apontar algumas considerações, na tentativa de oferecer um aporte um pouco mais fundamentado ao debate em torno da questão. Assim que, analisando os indicadores de quantidade de emprego formal nos ramos de atividade de Blumenau – ainda segundo as estatísticas do MTE, fonte RAIS/2008 e 2009 –, verifica-se que 41,6% dos trabalhadores se ativavam, em 2008, na indústria da transformação. Então se pode concluir que a indústria manufatureira é a que mais tem empregados em Blumenau, mais precisamente a indústria têxtil[18]. Daí se pode chegar a uma conclusão, seguindo o raciocínio já desenvolvido no curso deste artigo: as intensas jornadas de trabalho na indústria, tanto quantitativas – excessivas jornadas de trabalho – quanto qualitativas – má distribuição dos horários, sem as pausas necessárias –, tem desaguado numa maior sinistralidade laboral.
Não obstante, é interessante notar que na sequência das cidades que apresentaram mais de 1.000 casos de doenças não declaradas em 2008, surgem Curitiba, Brasília e Manaus, mais três capitais. Ocorre que no oitavo lugar aparece a cidade de Chapecó (SC), com 1.800 casos. É de impressionar que esta cidade tivesse tão somente 63.024 empregos formais em 2008, sendo 21.383 na indústria da transformação, com 33,9% do total. Assim, a taxa de sinistralidade de doenças não declaradas de Chapecó foi de 2.856,0 por 100.000 trabalhadores, ainda mais alta que a de Blumenau (quadro 5). Um dado importante é o fato de Chapecó ser considerada a capital brasileira da agroindústria, em cuja região se encontram as principais empresas processadoras e exportadoras de carnes de suínos, aves e derivados da América Latina[19].
Não é necessário comentar, outra vez, acerca das consequências negativas da intensificação do trabalho na indústria, principalmente pela intensidade das jornadas de trabalho, quantitativa e qualitativa, sobre a saúde dos trabalhadores. Os números de sinistralidade laboral falam por si.
Depois, aparecem São Bernardo do Campo (9º), Santo André (10º), Guarulhos (12º) e Osasco (15º), cidades paulistanas, assim como as capitais Recife (11º), Belo Horizonte (13º) – que tem a mais baixa taxa entre as 25 cidades com mais de 1.000 casos[20] – e Porto Alegre (14º). Pretende-se chamar a atenção para a cidade de Erechim (RS), pois ainda



[1] ANTUNES, R. Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 35.
[2] SPURGEON, A. Working time: its impact on safety and health.
[3] Urrutikoetxea Barrutia, M.Vivir para trabajar: la excesiva jornada de trabajo como factor de riesgo laboral”, p. 37.
[4] A Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Trabalho integra o Projeto Relatores Nacionais em DHESC, coordenado pela Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais – DHESC – Brasil, com apoio institucional do Programa de Voluntários das Nações Unidas (UNV/PNUD) e da Procuradoria Federal dos Diretos do Cidadão – PGR/MPF. Seu objetivo é o de contribuir para que o Brasil adote medidas de proteção e efetivação dos direitos humanos, com apoio na Constituição Federal de 1988 e nos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Em: Relatório da missão realizada pela Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Trabalho, no período de 24 a 27 de outubro de 2005, na região de Ribeirão Preto (SP), para apuração de violações de direitos humanos de trabalhadores (as) canavieiros(as). Cf. também SILVA, Maria Aparecida de Moraes et. al. “Do karoshi no Japão à birôla no Brasil: as faces do trabalho no capitalismo mundializado”. Disponível em: <http://www2.fct.unesp.br/nera/revistas/08/Silva.PDF>. Acesso em: 18 mai. 2011.
[5] FOLHA DE S. PAULO. Cortador de cana morreu após 70 dias de trabalho. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 mai. 2007. Folha Dinheiro, Caderno B, p. B9.
[6] Por isso se afirma que o método denominado Árvore de Causas (ADC), desenvolvido na França na década de 1970, é o mais correto para a análise do problema. Este método parte da premissa da compreensão dos acidentes como fenômenos multicausais, constituindo um método “clínico” de investigação que “propicia a identificação da rede de fatores envolvidos na gênesis do acidente”, com base no estudo das variações do desenvolvimento normal das tarefas, bem como das atividades, cujos componentes são: a) o indivíduo – com seus aspectos físicos e psicológicos, qualificação, função desempenhada etc. –; b) a tarefa – conjunto de ações executadas pelos trabalhadores –; c) o material – meios técnicos para que as tarefas possam ser executadas –; e d) o meio de trabalho – ou seja, o ambiente físico e inclusive social no qual ocorrem as atividades de produção da empresa. Depois de obtidas todas as informações necessárias se deve organizar os denominados fatores de acidente, “a partir dos quais se elabora o esquema ou árvore de causas”, para que se possa retirar lições do episódio, com vistas à “prevenção de outros acidentes com aspectos similares”. PEREIRA BINDER, M. C. e MUNIZ DE ALMEIDA, I. “Acidentes do Trabalho: Acaso ou Descaso?” Em: MENDES, R. Patologia do trabalho. Vol. 1, 2. ed. atual. e ampl. São Paulo: Atheneu, 2005, p. 779-786.
[7] ALBUQUERQUE DE OLIVEIRA, P. R. Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário – NTEP, Fator Acidentário de Prevenção – FAP: um novo olhar sobre a saúde do trabalhador. São Paulo: LTr, 2009, p. 84-85.
[8] Os dados foram extraídos do Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho – AEAT 2008 –, do MTE – Ministério do Trabalho e Emprego – e do MPS – Ministério da Previdência Social. MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO (MTE) et al. Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho – AEAT 2008. V.1. Brasília: MTE: MPS, 2008. Disponível em: <http://www.previdenciasocial.gov.br/arquivos/office/3_091125-174455-479.pdf>. Acesso em: 1º set. 2010.
[9] Precisamente 8.310.136, de acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Fonte: RAIS – Relação Anual de Informações Sociais. Elaboração: CGET/DES/SPPE/MTE – Coordenação Geral de Estatísticas do Trabalho; Declaração Eletrônica de Serviços; SPPE/MTE. Acesso em: 2 set. 2010. Disponível em: <www.mte.gov.br/rais/resultado_2008.pdf>.
[10] OIT. Perfil do Trabalho Decente no Brasil. 2009. Disponível em:<http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---integration/documents/publication/wcm_041773.pdf>. Acesso em: 4 out. 2010.
[11] WEISHAUPT PRONI, M. “Diferenciais da jornada de trabalho no Brasil”. Em: DARI KREIN, J.; BARROS BIAVASCHI, M.; OLIVEIRA ZANELLA, E. B. de; SOUZA FERREIRA, J. O. de (Org.). As transformações no mundo do trabalho e os diretos dos trabalhadores. São Paulo: LTr, 2006, p. 131-133.
[12] Apenas os bancários que exercem cargo de confiança (bancária) podem estar sujeitos a jornada de oito horas diárias (art. 224, § 2º, da CLT).
[13] DAL ROSSO, S. Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 104-112.
[14] Ibidem, p. 114-126.
[15] Ibidem, p. 131-134.
[16] A confecção de peças do vestuário, exceto roupas íntimas (1412) e a fabricação de calçados de couro (1531) tiveram, respectivamente, 3.627 e 1.309 casos, o que representa 68% das doenças não notificadas dos grupos 14 e 15.
[17] Informações para o Sistema Público de Emprego e Renda – Dados por Município. Disponível em: <http://perfildomunicipio.caged.gov.br/resultado_SPER_impressao...>. Acesso em: 4 out. 2010. Todos os dados que seguem foram extraídos da RAIS/2008 e 2009, através destas informações citadas.
[18] Tanto é assim que as próprias informações oficiais o demonstram, anunciando que a principal atividade econômica de Blumenau é a indústria têxtil e do vestuário, pois cerca de 70% da arrecadação de impostos do município é oriunda deste setor. Ademais, as maiores companhias deste setor mantêm fábricas na cidade. Disponível em: <http://guiasantacatarina.com.br/blumenau/cidade.php3>. Acesso em 26 out. 2010.
[19] Os grandes frigoríficos brasileiros têm unidade fabril no território de Chapecó, incluindo a maior indústria de produtos alimentícios do Brasil e a maior exportadora de carne de porco do mundo. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Chapec%C3%B3>. Acesso em 26 out. 2010.
[20] A taxa de Belo Horizonte é de apenas 115,4 por 100.000 trabalhadores. As 25 cidades estão sendo apontadas neste tópico, passo a passo.

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