Caros alunos e amigos,
Nesta semana teremos a aula mais importante do curso, sobre ônus da prova no processo do trabalho.
Para auxiliar a compreensão do tema, segue artigo que escrevi sobre a matéria, publicado na Revista LTr, em junho de 2004. Conquanto se trate de artigo um pouco antigo, as diretrizes doutrinárias continuam exatamente as mesmas.
PARTE 1
O ÔNUS DA PROVA E SUA INVERSÃO NO PROCESSO DO
TRABALHO
José Antônio Ribeiro de
Oliveira Silva (*)
Sumário: 1. Ônus da prova. 2. Crítica à doutrina. 3.
O iter proposto. 3.1. O art. 334 do
CPC. 3.2. O art. 335 do CPC. 3.3. A definição do ônus da prova. 3.4. A natureza
dos fatos controvertidos. 3.5. Momento da definição. 3.6. Ônus objetivo e ônus
subjetivo. 4. A inversão do ônus da prova. 4.1. O Código de Proteção e Defesa
do Consumidor. 4.2. Princípio da aptidão para a prova. 4.3. Momento da
inversão. 5. Conclusão.
1.
Ônus da prova
Em nosso
entender, não tem sido bem compreendido o instituto do ônus da prova no
processo do trabalho, razão pela qual pensamos seja conveniente expor nossas
idéias a respeito, para que possam ser analisadas e avaliadas pelos que se
dedicam ao estudo desse ramo do processo.
De todos sabido
não se tratar o ônus da prova de obrigação, tampouco de dever, mas meramente de
um encargo do qual deve se desincumbir o litigante que, segundo as regras de
definição, tem a incumbência de convencer o juiz da veracidade dos fatos
afirmados[1].
Não se trata de obrigação porque se dele a parte não se desincumbir não sofrerá
nenhuma sanção jurídica por isso (execução ou pena). E nem mesmo constitui um
dever, porque este se dá em relação a alguém, enquanto o ônus é da própria
parte, em relação a si mesma, visto que, se não produzir a prova, certamente
não terá reconhecido seu direito ou pretensão[2].
2. Crítica à doutrina
Manoel Antonio Teixeira Filho entende
que o processo do trabalho possui regra específica acerca do ônus da prova,
materializada no art. 818 da CLT. Eis o teor da citada norma legal:
"Art. 818.
A prova das alegações incumbe à parte que as fizer".
E
acrescenta que, dessa forma, "nenhum intérprete está autorizado a
incursionar pelos domínios inóspitos do processo civil, para de lá trazer, por
empréstimo", o art. 333 do CPC, sendo "sempre prudente lembrar que o
art. 769, da CLT, só autoriza a adoção supletiva de normas forâneas quando esse
texto trabalhista for omisso __ pressuposto que não se verifica em sede de ônus
da prova"[3].
Entende ele, portanto, que não há omissão quanto à matéria no Estatuto
Consolidado.
De
acordo com o insigne processualista, há uma profunda diferença de resultados,
conforme se faça opção pela aplicação do art. 818 da CLT ou pelo art. 333 do
CPC. E oferece exemplos para justificar seu pensamento: 1º) se o empregado
alega que foi despedido sem justa causa e o empregador afirma que ele se
demitiu do emprego, pelo art. 333 do CPC o ônus da prova caberia ao autor por
ser fato constitutivo do seu direito, ao passo que na aplicação do art. 818 da
CLT o ônus seria do empregador por ter feito alegação "que está em
antagonismo com a constante da petição
inicial"; 2º) se o empregado alega que trabalhava em sobrejornada e o
empregador nega este fato, pelo art. 818 da CLT o ônus da prova seria do réu,
por ter feito "uma alegação contraposta à do adversário", devendo,
portanto, provar que o autor "só cumpria jornada ordinária"[4].
Pensamos,
todavia, que a orientação legal do citado art. 818 é insuficiente para a
solução de todas as controvérsias, mesmo porque se trata apenas de um princípio
da prova, conhecido desde o Direito Romano, segundo o qual o ônus da prova
incumbe a quem alega o fato. Faz-se necessária, por isso, a aplicação
subsidiária do art. 333 do CPC[5],
cujo teor é o que segue:
"Art. 333. O ônus da prova incumbe:
I __ ao autor, quanto ao fato
constitutivo do seu direito;
II __ ao réu, quanto à existência de
fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor".
Nem seria
preciso lembrar que o art. 818 da CLT é contemporâneo do CPC de 1939, que não
tinha regras objetivas para a definição do ônus da prova. Foi para a fixação de
um critério objetivo quanto à distribuição do ônus da prova entre os litigantes
que o art. 333 do atual CPC, com marcante influência das lições de Chiovenda e
Carnelutti, dispôs incumbir tal encargo: a) ao autor, quanto ao fato
constitutivo do seu direito (inciso I); b) ao réu, quanto ao fato impeditivo,
modificativo ou extintivo do direito do autor (inciso II).
César Pereira da
Silva Machado Júnior, em sua excelente obra a respeito do tema, propõe um
roteiro para a definição do ônus da
prova, muito interessante, mas que se nos afigura incorreto. Propõe o excelente
juiz e professor que, na análise do ônus da prova, no processo do trabalho,
deve-se investigar: 1º) se há princípios de direito do trabalho em favor do
empregado; 2º) se pode ser aplicado o princípio da aptidão para a prova; 3º) se
há regras de pré-constituição da prova; 4º) se há máximas de experiência comum;
5º) para somente depois se analisar o teor do art. 333 do CPC[6].
Ocorre que, data venia, não é esse o iter correto para se definir o ônus da
prova. Vejamos as razões.
Primeiro, porque
se os princípios de direito do trabalho oferecem presunções de veracidade
quanto a determinados fatos - e isso é verdadeiro - não podem eles ser
colocados no roteiro de fixação do ônus da prova, exatamente porque não
dependem de prova os fatos em cujo favor milita presunção legal de existência
ou de veracidade (art. 334, inciso IV, do CPC)[7].
O Ministro Carlos Alberto Reis de Paula observa que, se há uma presunção
favorável ao fato, não é necessária a produção de prova dele[8].
Se a presunção gera uma dispensa da prova, ainda não estamos no campo da
definição de quem seja o ônus de provar um dos fatos controvertidos.
Segundo, porque
o princípio da aptidão para a prova deve, em verdade, ser utilizado no terreno
da inversão do ônus da prova, portanto, quando este já está definido no caso
concreto, fazendo-se a transferência do encargo à outra parte, diante da maior
facilidade que esta possui para produzir a prova do fato por ela alegado, o que
se justifica quando a parte de quem é o ônus não tem condições de se
desincumbir dele a contento, como se verá em tópico próprio.
Terceiro, porque
as regras de pré-constituição da prova também não servem para a definição do
ônus, já que não se trata este de obrigação e, por isso mesmo, o empregador não
tem obrigação legal de exibir os documentos obrigatórios - no campo do direito
material - nos autos do processo. Até porque ninguém está obrigado a fazer ou
deixar de fazer algo senão em virtude de lei, o que se constitui em garantia
constitucional, ex vi do art. 5º,
inciso II, da Lex Legum.
Quarto, porque
as máximas de experiência, comum ou técnica, pelo que se depreende da análise
do art. 335 do CPC, também tornam despicienda a produção de prova a respeito do fato, tanto que muito se
aproximam da idéia de verossimilhança, conforme bem verificou Carlos Alberto
Reis de Paula[9]. E
se sobre o fato alegado paira uma verossimilhança, uma parecença com a verdade
real, é porque pode ser tido como verdadeiro, dispensando-se a prova a seu
respeito.
Também o
Ministro Carlos Alberto Reis de Paula, embora em sua magnífica obra tenha
verificado que a presunção e as máximas de experiência devem ser examinadas num
momento anterior à definição do ônus da prova, quando tratou da inversão do
referido ônus elencou para sua análise os princípios da aptidão para a prova, in dubio pro operario e da
preconstituição da prova[10],
quando somente o primeiro deles se trata de autêntico princípio autorizador da
inversão do ônus da prova.
E justificaremos
nosso pensamento com mais argumentos no tópico apropriado. Basta-nos, agora,
apontar que o princípio da proteção, com a regra especial do in dubio pro misero, jamais poderá ser
utilizado no campo da valoração da prova, sob pena de o juiz perder totalmente
sua imprescindível imparcialidade. Quanto ao princípio da preconstituição da
prova, se é que se trata de princípio, já manifestamos opinião de que por não
se tratar o ônus probatório de obrigação, não tem o réu obrigação alguma de
exibir documentos sem que para tanto haja determinação judicial.
3. O iter proposto.
Por isso não
hesitamos em afirmar que, em verdade, a ordem dispositiva do Código de Processo
Civil está incorreta.
Procedendo-se a
uma investigação científica do tema, verifica-se que a ordem lógica pressupõe,
primeiro, a análise das hipóteses previstas no art. 334 do CPC, depois, das
preconizadas no art. 335 do mesmo Estatuto, para somente após, quando não
verificado nenhum dos antecedentes ali
descritos, chegar-se ao tão comentado art. 333 e se indagar sobre o ônus da
prova no caso concreto.
3.1. O art. 334 do CPC.
De todos
conhecido o teor do art. 334 do CPC, segundo o qual não dependem de prova os
fatos:
1) Notórios __
fatos notórios são os conhecidos da generalidade das pessoas, fazendo parte da
cultura comum de determinado lugar, ex.: rodovia servida por transporte
público; período de corte da cana-de-açúcar, de colheita da laranja; período de
safra do arroz, do feijão, da soja etc. Daí se tem que a parte que alegar
qualquer desses fatos notórios não precisa prová-los, a não ser que o juiz não
saiba da sua notoriedade e exija sua demonstração[11].
2) Confessados
pela parte contrária __ já que a confissão é o reconhecimento feito, por umas
das partes, do fato alegado pela parte contrária, em seu prejuízo e em
benefício desta, podendo ser judicial ou extrajudicial (art. 348 do CPC), sendo
que a judicial faz prova plena contra o confitente (art. 350, caput, do CPC) e, por isso, é a mais
convincente das provas. Destarte, se o autor afirma que prestou serviços ao réu
por um período determinado, recebendo uma quantia fixa, cumprindo um horário
preestabelecido, sendo todos estes fatos confirmados na defesa, prova nenhuma
terá de produzir acerca da relação de emprego, como se verá adiante com mais
fundamentos.
3)
Incontroversos __ ou seja, não contestados no prazo da defesa (princípio da
eventualidade - art. 300 do CPC) ou não impugnados de forma especificada
(princípio da impugnação especificada dos fatos - art. 302, caput, do CPC). Assim, impugnando o réu
apenas que o autor não foi seu empregado, oferecendo defesa por negação geral
quanto aos demais fatos (ex.: trabalho em sobrejornada, em domingos e feriados,
não fruição do intervalo intrajornada etc.), restam estes incontroversos, não
havendo qualquer necessidade de se produzir prova deles. O mesmo se diga quando
o réu apenas argumenta que o autor era gerente, ou que se ativava em serviços
externos, não impugnando especificamente o horário de trabalho lançado na
exordial.
4) Em cujo favor
milita presunção legal de existência ou de veracidade __ porquanto presunção é
a ilação que se tira de um fato certo, para a prova de um fato desconhecido,
tratando-se, portanto, de um processo lógico, por meio do qual se concebe como
verdadeiro um fato do qual não se tem prova, porque presumível, diante da
existência de outro fato, provado e certo, que leva à conclusão de que o fato
desconhecido ocorreu. Não se confunde, assim, com o indício, porque este é o
fato conhecido do qual se extrai a presunção. O indício é a premissa, a
presunção o resultado.
Quanto às
espécies, temos:
a) a presunção
comum (hominis), fundada no que
ordinariamente acontece, ex.: presume-se que ninguém celebra um negócio
jurídico para ter prejuízo; presume-se que um ser humano não consegue trabalhar
15 horas ou mais por dia sem intervalo para refeição, ou sem folga num longo
período contratual; presume-se que empregado não sobrevive sem receber salário
por 4, 5, 6 meses;
b) e a presunção
legal, que se dicotomiza em:
1) absoluta (iuris et de iure), que não admite prova
em contrário, ex.: o conhecimento obrigatório da lei (art. 3º da LICC), a
indisponibilidade dos direitos fundamentais: a vida, a saúde, a liberdade, a
cidadania, o estado civil da pessoa (arts. 320, inciso II, e 351 do CPC);
presunção de que não houve demissão ou de que não houve renúncia à estabilidade
se não observada a formalidade prevista no art. 477, § 1º, ou no art. 500 da
CLT, respectivamente;
2) e relativa (iuris tantum), que pode ser elidida por outra prova, ex.: o
pagamento da última parcela faz presumir o pagamento das anteriores, o pagamento
do principal faz presumir o pagamento dos juros, a posse do título da dívida
pelo devedor faz presumir o seu pagamento (arts. 322, 323 e 324 do novo Código
Civil); no campo do direito do trabalho, a prestação de serviços por pessoa
física, de forma habitual e mediante remuneração, faz presumir a existência de
uma relação de emprego; a extinção do contrato de emprego faz presumir uma
dispensa imotivada, diante do princípio da continuidade da relação de emprego;
as anotações na CTPS geram presunção relativa de veracidade, podendo ser
elididas por qualquer outro meio de prova (art. 456 da CLT; Súmula 12 do TST);
o interregno mínimo entre um contrato e outro faz presumir a fraude, dando
ensejo à unicidade contratual (art. 9º da CLT).
Vê-se, pois, que
em todos esses exemplos ainda não estamos no campo da definição do ônus da
prova, haja vista que, alegado fato em cujo favor milita presunção legal ou
jurídica[12]
de existência, não precisa a parte produzir prova do mesmo. Basta a prova do
indício, do qual se extrai a presunção de ser verdadeiro o fato alegado.
Provada a prestação de serviços por pessoa física, de forma habitual e mediante
remuneração, presume-se a subordinação e, por via de consequência, a relação de
emprego. Não negada a extinção do contrato de emprego, presume-se a dispensa
imotivada (Súmula 212 do TST).
(*) José Antônio
Ribeiro de Oliveira Silva é Juiz do Trabalho, Titular da 2ª Vara do Trabalho de
Araraquara (SP), Gestor Regional (1º
grau) do Programa de Prevenção de Acidentes do Trabalho instituído pelo
Tribunal Superior do Trabalho, Mestre em Direito das Obrigações pela
UNESP/SP, Doutor em
Direito Social pela Universidad de Castilla-La Mancha
(Espanha), Membro do Conselho Técnico da Revista do Tribunal Regional do
Trabalho da 15ª Região (Subcomissão de Doutrina Internacional), Professor da
Escola Judicial do TRT da 15ª Região. (qualificação atualizada)
[1] Quem melhor desenvolveu essa
noção foi James Goldschmit, segundo Cândido Rangel Dinamarco, para quem ônus ou
encargo é um peso que se põe sobre uma pessoa de modo que ela se desincumba
dele. In Ônus de contestar e o efeito da
revelia. Revista de Processo, v. 11, nº 41, jan/mar 1986, p. 185-186.
[2] José Antônio Ribeiro de Oliveira
Silva. Questões relevantes do
procedimento sumaríssimo: 100 perguntas e respostas. São Paulo, LTr, 2000,
p. 89.
[3] Curso de processo do trabalho: perguntas e respostas sobre assuntos
polêmicos em opúsculos específicos: nº 6: provas. São Paulo, LTr, 1997, p.
13.
[4] Idem, p. 14. Os mesmos exemplos já haviam sido dados pelo eminente
processualista em sua clássica obra: A
prova no processo do trabalho. 5ª ed. rev. e ampl., 4ª tiragem, São Paulo,
LTr, 1993, p. 80-82. Contudo, equivocado o pensamento, porquanto no primeiro
caso o réu argüiu fato impeditivo do direito do autor, sendo dele o ônus da
prova, ao passo que no segundo será um despropósito exigir do réu prova da
negação do fato, como se verá ao longo desse trabalho.
[5] Assim também pensa o mestre
Wagner D. Giglio. Direito processual do
trabalho. 9ª ed., São Paulo, LTr, 1995, p. 246. Igualmente, o saudoso
Valentin Carrion. Comentários à
Consolidação das Leis do Trabalho. 20ª ed. atual. e ampl. São Paulo,
Saraiva, 1995, p. 589-590.
[6] O ônus da prova no processo do trabalho. 3ª ed. rev. e atual. São
Paulo, LTr, 2001, p. 136.
[7] É curioso notar que o próprio
autor referido fundamenta a utilização dos princípios de direito do trabalho,
como critério de definição, no citado art. 334, inciso IV, do CPC. Op. cit., p. 137.
[8] A especificidade do ônus da prova no processo do trabalho. São
Paulo, LTr, 2001, p. 77-79. E acrescenta que, por isso, não há falar em
inversão do ônus da prova no caso.
[9] Idem, p. 87-89.
[10] Idem, p. 139.
[11] Por isso se nos afigura
incorreto, data venia, o tribunal
reformar a sentença de primeiro grau porque não há evidência nos autos de que o
fato era público e notório. Ora, o destinatário da prova é o juiz e, via de
regra, o de primeira instância. Portanto, se ele prescinde da prova porque já
sabe que naquela localidade o fato é notório, não pode o tribunal entender que
o juiz não se encontra preparado para isso fundamentar em sua decisão.
[12] Pensamos que o legislador quis
se referir também à presunção jurídica, que deriva dos princípios gerais de
direito. No direito do trabalho, dos princípios específicos desse ramo do
direito.
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