segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O ônus da prova e sua inversão no processo do trabalho. Parte 1


Caros alunos e amigos,
 Nesta semana teremos a aula mais importante do curso, sobre ônus da prova no processo do trabalho.
 Para auxiliar a compreensão do tema, segue artigo que escrevi sobre a matéria, publicado na Revista LTr, em junho de 2004. Conquanto se trate de artigo um pouco antigo, as diretrizes doutrinárias continuam exatamente as mesmas.
              
                                                                             
                                                                  
      
                               PARTE 1


O ÔNUS DA PROVA E SUA INVERSÃO NO PROCESSO DO TRABALHO

José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva (*)

Sumário: 1. Ônus da prova. 2. Crítica à doutrina. 3. O iter proposto. 3.1. O art. 334 do CPC. 3.2. O art. 335 do CPC. 3.3. A definição do ônus da prova. 3.4. A natureza dos fatos controvertidos. 3.5. Momento da definição. 3.6. Ônus objetivo e ônus subjetivo. 4. A inversão do ônus da prova. 4.1. O Código de Proteção e Defesa do Consumidor. 4.2. Princípio da aptidão para a prova. 4.3. Momento da inversão. 5. Conclusão.


1. Ônus da prova

Em nosso entender, não tem sido bem compreendido o instituto do ônus da prova no processo do trabalho, razão pela qual pensamos seja conveniente expor nossas idéias a respeito, para que possam ser analisadas e avaliadas pelos que se dedicam ao estudo desse ramo do processo.

De todos sabido não se tratar o ônus da prova de obrigação, tampouco de dever, mas meramente de um encargo do qual deve se desincumbir o litigante que, segundo as regras de definição, tem a incumbência de convencer o juiz da veracidade dos fatos afirmados[1]. Não se trata de obrigação porque se dele a parte não se desincumbir não sofrerá nenhuma sanção jurídica por isso (execução ou pena). E nem mesmo constitui um dever, porque este se dá em relação a alguém, enquanto o ônus é da própria parte, em relação a si mesma, visto que, se não produzir a prova, certamente não terá reconhecido seu direito ou pretensão[2].

2. Crítica à doutrina

Manoel Antonio Teixeira Filho entende que o processo do trabalho possui regra específica acerca do ônus da prova, materializada no art. 818 da CLT. Eis o teor da citada norma legal:

"Art. 818. A prova das alegações incumbe à parte que as fizer".

E acrescenta que, dessa forma, "nenhum intérprete está autorizado a incursionar pelos domínios inóspitos do processo civil, para de lá trazer, por empréstimo", o art. 333 do CPC, sendo "sempre prudente lembrar que o art. 769, da CLT, só autoriza a adoção supletiva de normas forâneas quando esse texto trabalhista for omisso __ pressuposto que não se verifica em sede de ônus da prova"[3]. Entende ele, portanto, que não há omissão quanto à matéria no Estatuto Consolidado.

De acordo com o insigne processualista, há uma profunda diferença de resultados, conforme se faça opção pela aplicação do art. 818 da CLT ou pelo art. 333 do CPC. E oferece exemplos para justificar seu pensamento: 1º) se o empregado alega que foi despedido sem justa causa e o empregador afirma que ele se demitiu do emprego, pelo art. 333 do CPC o ônus da prova caberia ao autor por ser fato constitutivo do seu direito, ao passo que na aplicação do art. 818 da CLT o ônus seria do empregador por ter feito alegação "que está em antagonismo com a constante da  petição inicial"; 2º) se o empregado alega que trabalhava em sobrejornada e o empregador nega este fato, pelo art. 818 da CLT o ônus da prova seria do réu, por ter feito "uma alegação contraposta à do adversário", devendo, portanto, provar que o autor "só cumpria jornada ordinária"[4].

Pensamos, todavia, que a orientação legal do citado art. 818 é insuficiente para a solução de todas as controvérsias, mesmo porque se trata apenas de um princípio da prova, conhecido desde o Direito Romano, segundo o qual o ônus da prova incumbe a quem alega o fato. Faz-se necessária, por isso, a aplicação subsidiária do art. 333 do CPC[5], cujo teor é o que segue:

"Art. 333. O ônus da prova incumbe:
I __ ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II __ ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor".

Nem seria preciso lembrar que o art. 818 da CLT é contemporâneo do CPC de 1939, que não tinha regras objetivas para a definição do ônus da prova. Foi para a fixação de um critério objetivo quanto à distribuição do ônus da prova entre os litigantes que o art. 333 do atual CPC, com marcante influência das lições de Chiovenda e Carnelutti, dispôs incumbir tal encargo: a) ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito (inciso I); b) ao réu, quanto ao fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor (inciso II).

César Pereira da Silva Machado Júnior, em sua excelente obra a respeito do tema, propõe um roteiro para a definição do ônus da prova, muito interessante, mas que se nos afigura incorreto. Propõe o excelente juiz e professor que, na análise do ônus da prova, no processo do trabalho, deve-se investigar: 1º) se há princípios de direito do trabalho em favor do empregado; 2º) se pode ser aplicado o princípio da aptidão para a prova; 3º) se há regras de pré-constituição da prova; 4º) se há máximas de experiência comum; 5º) para somente depois se analisar o teor do art. 333 do CPC[6]. Ocorre que, data venia, não é esse o iter correto para se definir o ônus da prova. Vejamos as razões.

Primeiro, porque se os princípios de direito do trabalho oferecem presunções de veracidade quanto a determinados fatos - e isso é verdadeiro - não podem eles ser colocados no roteiro de fixação do ônus da prova, exatamente porque não dependem de prova os fatos em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade (art. 334, inciso IV, do CPC)[7]. O Ministro Carlos Alberto Reis de Paula observa que, se há uma presunção favorável ao fato, não é necessária a produção de prova dele[8]. Se a presunção gera uma dispensa da prova, ainda não estamos no campo da definição de quem seja o ônus de provar um dos fatos controvertidos.

Segundo, porque o princípio da aptidão para a prova deve, em verdade, ser utilizado no terreno da inversão do ônus da prova, portanto, quando este já está definido no caso concreto, fazendo-se a transferência do encargo à outra parte, diante da maior facilidade que esta possui para produzir a prova do fato por ela alegado, o que se justifica quando a parte de quem é o ônus não tem condições de se desincumbir dele a contento, como se verá em tópico próprio.

Terceiro, porque as regras de pré-constituição da prova também não servem para a definição do ônus, já que não se trata este de obrigação e, por isso mesmo, o empregador não tem obrigação legal de exibir os documentos obrigatórios - no campo do direito material - nos autos do processo. Até porque ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, o que se constitui em garantia constitucional, ex vi do art. 5º, inciso II, da Lex Legum.

Quarto, porque as máximas de experiência, comum ou técnica, pelo que se depreende da análise do art. 335 do CPC, também tornam despicienda a produção de prova a  respeito do fato, tanto que muito se aproximam da idéia de verossimilhança, conforme bem verificou Carlos Alberto Reis de Paula[9]. E se sobre o fato alegado paira uma verossimilhança, uma parecença com a verdade real, é porque pode ser tido como verdadeiro, dispensando-se a prova a seu respeito.

Também o Ministro Carlos Alberto Reis de Paula, embora em sua magnífica obra tenha verificado que a presunção e as máximas de experiência devem ser examinadas num momento anterior à definição do ônus da prova, quando tratou da inversão do referido ônus elencou para sua análise os princípios da aptidão para a prova, in dubio pro operario e da preconstituição da prova[10], quando somente o primeiro deles se trata de autêntico princípio autorizador da inversão do ônus da prova.

E justificaremos nosso pensamento com mais argumentos no tópico apropriado. Basta-nos, agora, apontar que o princípio da proteção, com a regra especial do in dubio pro misero, jamais poderá ser utilizado no campo da valoração da prova, sob pena de o juiz perder totalmente sua imprescindível imparcialidade. Quanto ao princípio da preconstituição da prova, se é que se trata de princípio, já manifestamos opinião de que por não se tratar o ônus probatório de obrigação, não tem o réu obrigação alguma de exibir documentos sem que para tanto haja determinação judicial.   



3. O iter proposto.

Por isso não hesitamos em afirmar que, em verdade, a ordem dispositiva do Código de Processo Civil está incorreta.

Procedendo-se a uma investigação científica do tema, verifica-se que a ordem lógica pressupõe, primeiro, a análise das hipóteses previstas no art. 334 do CPC, depois, das preconizadas no art. 335 do mesmo Estatuto, para somente após, quando não verificado nenhum dos antecedentes ali descritos, chegar-se ao tão comentado art. 333 e se indagar sobre o ônus da prova no caso concreto.



3.1. O art. 334 do CPC.

De todos conhecido o teor do art. 334 do CPC, segundo o qual não dependem de prova os fatos:

1) Notórios __ fatos notórios são os conhecidos da generalidade das pessoas, fazendo parte da cultura comum de determinado lugar, ex.: rodovia servida por transporte público; período de corte da cana-de-açúcar, de colheita da laranja; período de safra do arroz, do feijão, da soja etc. Daí se tem que a parte que alegar qualquer desses fatos notórios não precisa prová-los, a não ser que o juiz não saiba da sua notoriedade e exija sua demonstração[11].

2) Confessados pela parte contrária __ já que a confissão é o reconhecimento feito, por umas das partes, do fato alegado pela parte contrária, em seu prejuízo e em benefício desta, podendo ser judicial ou extrajudicial (art. 348 do CPC), sendo que a judicial faz prova plena contra o confitente (art. 350, caput, do CPC) e, por isso, é a mais convincente das provas. Destarte, se o autor afirma que prestou serviços ao réu por um período determinado, recebendo uma quantia fixa, cumprindo um horário preestabelecido, sendo todos estes fatos confirmados na defesa, prova nenhuma terá de produzir acerca da relação de emprego, como se verá adiante com mais fundamentos.

3) Incontroversos __ ou seja, não contestados no prazo da defesa (princípio da eventualidade - art. 300 do CPC) ou não impugnados de forma especificada (princípio da impugnação especificada dos fatos - art. 302, caput, do CPC). Assim, impugnando o réu apenas que o autor não foi seu empregado, oferecendo defesa por negação geral quanto aos demais fatos (ex.: trabalho em sobrejornada, em domingos e feriados, não fruição do intervalo intrajornada etc.), restam estes incontroversos, não havendo qualquer necessidade de se produzir prova deles. O mesmo se diga quando o réu apenas argumenta que o autor era gerente, ou que se ativava em serviços externos, não impugnando especificamente o horário de trabalho lançado na exordial.

4) Em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade __ porquanto presunção é a ilação que se tira de um fato certo, para a prova de um fato desconhecido, tratando-se, portanto, de um processo lógico, por meio do qual se concebe como verdadeiro um fato do qual não se tem prova, porque presumível, diante da existência de outro fato, provado e certo, que leva à conclusão de que o fato desconhecido ocorreu. Não se confunde, assim, com o indício, porque este é o fato conhecido do qual se extrai a presunção. O indício é a premissa, a presunção o resultado.

Quanto às espécies, temos:
a) a presunção comum (hominis), fundada no que ordinariamente acontece, ex.: presume-se que ninguém celebra um negócio jurídico para ter prejuízo; presume-se que um ser humano não consegue trabalhar 15 horas ou mais por dia sem intervalo para refeição, ou sem folga num longo período contratual; presume-se que empregado não sobrevive sem receber salário por 4, 5, 6 meses;

b) e a presunção legal, que se dicotomiza em:

1) absoluta (iuris et de iure), que não admite prova em contrário, ex.: o conhecimento obrigatório da lei (art. 3º da LICC), a indisponibilidade dos direitos fundamentais: a vida, a saúde, a liberdade, a cidadania, o estado civil da pessoa (arts. 320, inciso II, e 351 do CPC); presunção de que não houve demissão ou de que não houve renúncia à estabilidade se não observada a formalidade prevista no art. 477, § 1º, ou no art. 500 da CLT, respectivamente;

2) e relativa (iuris tantum), que pode ser elidida por outra prova, ex.: o pagamento da última parcela faz presumir o pagamento das anteriores, o pagamento do principal faz presumir o pagamento dos juros, a posse do título da dívida pelo devedor faz presumir o seu pagamento (arts. 322, 323 e 324 do novo Código Civil); no campo do direito do trabalho, a prestação de serviços por pessoa física, de forma habitual e mediante remuneração, faz presumir a existência de uma relação de emprego; a extinção do contrato de emprego faz presumir uma dispensa imotivada, diante do princípio da continuidade da relação de emprego; as anotações na CTPS geram presunção relativa de veracidade, podendo ser elididas por qualquer outro meio de prova (art. 456 da CLT; Súmula 12 do TST); o interregno mínimo entre um contrato e outro faz presumir a fraude, dando ensejo à unicidade contratual (art. 9º da CLT).

Vê-se, pois, que em todos esses exemplos ainda não estamos no campo da definição do ônus da prova, haja vista que, alegado fato em cujo favor milita presunção legal ou jurídica[12] de existência, não precisa a parte produzir prova do mesmo. Basta a prova do indício, do qual se extrai a presunção de ser verdadeiro o fato alegado. Provada a prestação de serviços por pessoa física, de forma habitual e mediante remuneração, presume-se a subordinação e, por via de consequência, a relação de emprego. Não negada a extinção do contrato de emprego, presume-se a dispensa imotivada (Súmula 212 do TST).



(*) José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva é Juiz do Trabalho, Titular da 2ª Vara do Trabalho de Araraquara (SP), Gestor Regional (1º grau) do Programa de Prevenção de Acidentes do Trabalho instituído pelo Tribunal Superior do Trabalho, Mestre em Direito das Obrigações pela UNESP/SP, Doutor em Direito Social pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha), Membro do Conselho Técnico da Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Subcomissão de Doutrina Internacional), Professor da Escola Judicial do TRT da 15ª Região. (qualificação atualizada)
[1] Quem melhor desenvolveu essa noção foi James Goldschmit, segundo Cândido Rangel Dinamarco, para quem ônus ou encargo é um peso que se põe sobre uma pessoa de modo que ela se desincumba dele. In Ônus de contestar e o efeito da revelia. Revista de Processo, v. 11, nº 41, jan/mar 1986, p. 185-186.
[2] José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva. Questões relevantes do procedimento sumaríssimo: 100 perguntas e respostas. São Paulo, LTr, 2000, p. 89.
[3] Curso de processo do trabalho: perguntas e respostas sobre assuntos polêmicos em opúsculos específicos: nº 6: provas. São Paulo, LTr, 1997, p. 13.
[4] Idem, p. 14. Os mesmos exemplos já haviam sido dados pelo eminente processualista em sua clássica obra: A prova no processo do trabalho. 5ª ed. rev. e ampl., 4ª tiragem, São Paulo, LTr, 1993, p. 80-82. Contudo, equivocado o pensamento, porquanto no primeiro caso o réu argüiu fato impeditivo do direito do autor, sendo dele o ônus da prova, ao passo que no segundo será um despropósito exigir do réu prova da negação do fato, como se verá ao longo desse trabalho.
[5] Assim também pensa o mestre Wagner D. Giglio. Direito processual do trabalho. 9ª ed., São Paulo, LTr, 1995, p. 246. Igualmente, o saudoso Valentin Carrion. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 20ª ed. atual. e ampl. São Paulo, Saraiva, 1995, p. 589-590.
[6] O ônus da prova no processo do trabalho. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo, LTr, 2001, p. 136.
[7] É curioso notar que o próprio autor referido fundamenta a utilização dos princípios de direito do trabalho, como critério de definição, no citado art. 334, inciso IV, do CPC. Op. cit., p. 137.
[8] A especificidade do ônus da prova no processo do trabalho. São Paulo, LTr, 2001, p. 77-79. E acrescenta que, por isso, não há falar em inversão do ônus da prova no caso.
[9] Idem, p. 87-89.
[10] Idem, p. 139.
[11] Por isso se nos afigura incorreto, data venia, o tribunal reformar a sentença de primeiro grau porque não há evidência nos autos de que o fato era público e notório. Ora, o destinatário da prova é o juiz e, via de regra, o de primeira instância. Portanto, se ele prescinde da prova porque já sabe que naquela localidade o fato é notório, não pode o tribunal entender que o juiz não se encontra preparado para isso fundamentar em sua decisão.
[12] Pensamos que o legislador quis se referir também à presunção jurídica, que deriva dos princípios gerais de direito. No direito do trabalho, dos princípios específicos desse ramo do direito.

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