terça-feira, 5 de novembro de 2013

O ônus da prova e sua inversão no processo do trabalho. Parte 2.



                                                         
                  O ÔNUS DA PROVA E SUA INVERSÃO 
                       NO PROCESSO DO TRABALHO



                                                             PARTE 2




3.2. O art. 335 do CPC.

Ainda antes de examinar os fatos controvertidos para se saber de quem é o ônus da prova, temos de verificar se quanto ao fato alegado não existem máximas de experiência que podem ser aplicadas.

A utilização delas está autorizada pelo art. 335 do CPC, podendo se tratar de: 1) regras de experiência comum do juiz, com base na observação daquilo que habitualmente acontece em determinado lugar ou em determinada questão; 2) ou de regras de experiência técnica, que não integram o seu conhecimento geral, mas provém de conhecimentos especializados em determinada ciência, arte, ofício ou profissão. Resultam, pois, de uma atividade intelectual do juiz, de sua cultura geral ou específica; ex.: em dias de chuva forte não há atividade na lavoura; nos períodos de safra (colheita) a atividade rural é mais intensa[1]; quando há apenas um vigia ou vigilante no posto de trabalho, é sinal de que não pode abandonar tal posto durante sua jornada de trabalho.

Citamos em nosso livro o exemplo dos intervalos intrajornada dos cortadores de cana-de-açúcar e dos colhedores de laranja, que, segundo as máximas de experiência comum, advindas de inúmeras instruções, em processos que têm como ré a mesma empresa, revelam-se praticamente idênticos em todos os casos. Se o juiz já sabe que naquela empresa os fatos se passam daquela forma, para que instruir todos os dias um sem número de processos para chegar ao mesmíssimo resultado? Carecem, pois, de prova, os fatos sobre os quais pairam verossimilhança, de acordo com as máximas de experiência comum.

Portanto, confirmado que o vigia ou vigilante trabalhava sozinho no posto determinado, não terá o autor de produzir prova de que não usufruía intervalo. Verificado que todas as turmas de trabalho se ativam em condições idênticas ou muito semelhantes em determinada empresa, no período de corte de cana ou de colheita de laranja, não terá o autor de provar que usufruía apenas 15min de intervalo para almoço e outro tanto para café, por exemplo.


3.3. A definição do ônus da prova.

Mas, se nada disso houver, ou seja, se não existirem fatos notórios, confessados, incontroversos, presumidos ou sobre os quais haja máximas de experiência, exsurge o problema de se verificar de quem é o ônus da prova.

Havendo, pois, fatos controvertidos, relevantes e pertinentes[2], ter-se-á que investigar sobre o ônus da prova, à luz do art. 333 do CPC, tendo em vista que, uma vez mais, o art. 818 da CLT apenas enuncia um princípio geral a respeito da prova.


3.4. A natureza dos fatos controvertidos.

Preleciona Carlos Alberto Reis de Paula que, dentre as tantas teorias criadas para a repartição do ônus da prova entre as partes, merecem destaque as de Chiovenda, Rosemberg e Micheli, especialmente a teoria desenvolvida por Chiovenda, por ter sido a adotada no direito processual brasileiro (art. 333 do CPC). "Por esta teoria, indica-se a qual das partes incumbe o ônus da prova, consoante a natureza dos fatos"[3]. Assim, precisamos verificar se os fatos controvertidos são aquisitivos, impeditivos, modificativos ou extintivos de direitos.

Giuseppe Chiovenda, após verificar que não há como estabelecer um princípio geral e completo para a regência do ônus da prova, asseverando que a justificativa da repartição do referido ônus entre as partes está num princípio de justiça distributiva, qual seja, o princípio da igualdade das partes, enuncia que ao autor compete o ônus da prova do fato constitutivo do seu direito, cabendo, portanto, ao réu: a) "provar fatos que provam a inexistência do fato provado pelo autor, de modo direto ou indireto (e dizem-se motivos) e temos aí a simples prova contrária ou contraprova"; b) ou, "sem excluir o fato provado pelo autor", afirmar e provar "um outro que lhe elide os efeitos jurídicos, e aí temos a verdadeira prova do réu, a prova da exceção"[4] (destaques do autor).

E explica que a mencionada repartição do onus probandi leva em conta as condições de existência de uma relação jurídica, devendo o autor, assim, provar as condições específicas dessa relação, ou seja, as que lhe são próprias, essenciais, como o consenso e o preço da coisa na compra e venda. Não tem, portanto, o autor de provar as condições gerais, comuns a todos os negócios jurídicos, como a capacidade dos agentes, a seriedade do consenso, que a coisa não se trata de bem fora do comércio. A falta dessas condições habitualmente presentes deve ser provada por quem a alegar, o réu, por ser fato impeditivo. Em síntese: "o autor deve provar os fatos constitutivos, isto é, os fatos que normalmente produzem determinados efeitos jurídicos; o réu deve provar os fatos impeditivos, isto é, a falta daqueles fatos que normalmente concorrem com os fatos constitutivos, falta que impede a estes produzir o efeito que lhes é natural"[5].

A mesma doutrina é professada por Moacyr Amaral Santos, para quem a distribuição do ônus da prova pode ser sintetizada em duas regras:

1ª) ao autor cabe a prova dos fatos dos quais deduz o seu direito, ao passo que ao réu incumbe a prova dos fatos que, de modo direto ou indireto, atestam a inexistência daqueles, ou seja, a prova contrária ou contraprova;

2ª) ao autor compete a prova do fato constitutivo e ao réu a prova do fato extintivo, impeditivo ou modificativo, explicando que essa regra "reafirma a anterior, quanto ao autor, e atribui o ônus da prova ao réu que se defende por meio de exceção, no sentido amplo"[6].

Convém ressaltar ainda que não corresponde à melhor doutrina a diuturna afirmação de que não se produz prova de fato negativo. O que não se pode exigir é que a parte produza prova da negação do fato, porque absolutamente impossível, ou pelo menos extremamente difícil. No entanto, do fato negativo se pode exigir a produção de prova porque, em verdade, eqüivale a uma afirmação, qual seja, a de que o fato positivo afirmado pelo autor inocorreu. E a doutrina nos dá exemplos clássicos a esse respeito: se o réu nega que seja italiano é porque tem outra nacionalidade (Amaral Santos); se o réu nega que o tecido seja vermelho está afirmando que o tecido é de outra cor (Chiovenda) etc. Chiovenda observa que o próprio autor pode ter de provar um fato negativo, quando este se constitui no fundamento de sua demanda, ex.: prova de que não era devedor na ação de repetição de indébito; prova da omissão culposa na ação de responsabilidade civil; prova da inexistência do direito (da relação jurídica) na ação declaratória negativa[7].

Do quanto se expôs até aqui podemos afirmar:

1º) se o autor alega um fato aquisitivo do seu direito e o réu simplesmente nega a existência desse fato, cabe ao autor o ônus da prova, ex.: o autor afirma que prestou serviços ao réu na condição de empregado, negando o réu a prestação de serviços; o autor afirma labor em horas extras e o réu nega a sobrejornada etc.;

2º) se o autor alega um fato constitutivo e o réu outro lhe opõe, segundo a doutrina cada um teria de produzir a prova de suas alegações, mas continuaríamos no dilema de saber de quem é, efetivamente, o ônus da prova, razão pela qual preconizamos, para a solução do problema, a aplicação da máxima insuperável em matéria de prova: o ordinário se presume, o extraordinário se prova[8], ex.: o autor alega que prestava serviços pessoalmente ao réu, dele recebendo a contraprestação devida, de forma habitual, e o réu, mesmo reconhecendo tais fatos (ou não os contrariando), aduz que o autor não era seu empregado - era o quê, então? - o ordinário é que quem trabalha nessas condições seja empregado, presumindo-se a subordinação, cabendo, portanto, ao réu o ônus da prova da condição jurídica do trabalhador (se era autônomo, eventual ou qualquer outra coisa que não empregado), cabendo-lhe, assim, o ônus da prova do fato contraposto; por outro lado, se o autor afirma que se ativava das 7h às 17h, sem intervalo  intrajornada, defendendo-se o réu dizendo que ele o fazia das 7h às 16h, com 1h de intervalo, não tem este de provar o fato contraposto, porque o ordinário é que não se trabalhe em regime de horas extras, que são extraordinárias;

3º) se o autor afirma um fato e o réu o reconhece (ou não o nega), mas outro lhe opõe, impeditivo, modificativo ou extintivo dos efeitos que seriam produzidos por aquele, cabe ao réu o ônus da prova, porque ao réu incumbe provar o fato que fundamenta sua exceção (de direito material), ex.: o autor alega que prestava serviços habitualmente ao réu, dele recebendo salário, mas o réu, reconhecendo ou não negando tais fatos, argumenta que o autor era autônomo, ou que era eventual; o autor afirma que laborava das 7h às 17h, sem intervalo intrajornada, e o réu afirma que ele era gerente, ou que se ativava em serviços externos sem qualquer controle de jornada.

É curioso notar que, se o réu alega que o autor era autônomo ninguém duvida de que a ele cabe o ônus da prova, por se tratar de fato impeditivo do direito afirmado, mas, na mesma situação, apontada no outro exemplo, em que o réu reconhece o plexo de fatos afirmados pelo autor, mas alega que este não era seu empregado, a doutrina e a jurisprudência afirmam que, nesse caso, ao autor incumbe o ônus da prova. Ora, para situações idênticas, igual deve ser a solução. Se ordinariamente quem presta serviços de forma pessoal e habitual, recebendo a devida contraprestação, é empregado, porque presumida a subordinação, não se justifica tratamento desigual para o caso de o réu alegar: 1) num processo que o autor não era empregado; 2) e noutro que o autor era autônomo[9].


3.5. Momento da definição.

Questão interessante é a de se estabelecer qual o momento ideal para a definição do ônus da prova. Dizem uns que tal deve ocorrer no saneamento do processo, onde o juiz fixa os pontos controvertidos, decide as questões processuais pendentes e determina as provas que serão produzidas, designando audiência de instrução, se necessária, conforme o § 2º do art. 331 do CPC[10].

Outros, e são a maioria, afirmam que, em verdade, as regras de distribuição do ônus da prova são regras de julgamento, sendo, portanto, levadas em consideração pelo juiz apenas quando da prolação da sentença[11]. Daí se vê que o tema é daqueles que não comportam uma definição absoluta.

Quer nos parecer que, data venia, o juiz deve, sempre que possível, ao fixar os pontos controvertidos que dependem de prova a seu respeito, definir de quem é o ônus da prova, porque pode ocorrer de a parte ser pega de surpresa quando da leitura da sentença, na qual se fez consignar que dela era o ônus da prova e dele não se desincumbiu, o que fere os princípios do contraditório e da ampla defesa.

Exemplificamos: o autor alega que foi empregado do réu, negando este aquela qualidade; na audiência de instrução o autor não apresenta testemunhas, desistindo o réu de ouvir as suas; na sentença o juiz decide que o réu não se desincumbiu de seu ônus, porque ao reconhecer a prestação de serviços de forma pessoal, habitual e remunerada carreou para si o ônus de provar que ainda assim o autor não foi seu empregado. E a situação se agrava se não for seguido o princípio da identidade física do juiz, tendo o que dirigiu a audiência de instrução “desaconselhado” o réu da produção da prova e isso, como regra, não tiver constado da respectiva ata.

Demais, há diversas oportunidades em que o juiz fixa o ônus da prova quando da instrução, ex.: diante da alegação de justa causa o juiz define que o ônus da prova do fato é do réu; o réu alega que o autor era autônomo e o juiz define que é dele o ônus da prova do referido fato; o juiz determina ao réu a exibição dos cartões de ponto e este não atende, invertendo-se o ônus da prova com base na Súmula 338 do TST[12].

Por isso não se mostra desarrazoada a regra do art. 852-D da CLT, que trata do procedimento sumaríssimo, no qual o juiz tem ampla liberdade para determinar as provas que serão produzidas, "considerando o ônus probatório de cada litigante". Assim, o poder inquisitivo do juiz é quase absoluto na busca da verdade real, como já dispunha o art. 765 da CLT, mas encontra barreira nas regras de distribuição do ônus da prova, porque do contrário haveria perigosa violação do devido processo legal.

Pode, no entanto, presentes as hipóteses que autorizem, o juiz inverter o ônus da prova, considerando, sobretudo, a hipossuficiência de um e a aptidão para a prova do outro, o que será verificado oportunamente.



[1] Manoel Antonio Teixeira Filho, Op. cit. (A prova...), p. 71.
[2] Quem disserta com maestria sobre os fatos que dependem de prova é o mestre Moacyr Amaral Santos, na obra Primeiras linhas de direito processual civil. 2º vol., 13ª ed., São Paulo, Saraiva, 1990, p. 333-342.
[3] Op. cit., p. 104-105.
[4] Instituições de Direito Processual Civil, vol. II, Tradução do original italiano por Paolo Capitanio, com anotações do Prof. Enrico Tullio Liebman; Campinas, Bookseller, 1998, p. 447-449.
[5] Idem, p. 450-452.
[6] Op. cit., p. 347.
[7] Op. cit., p. 447. Chiovenda leciona mais à frente (p. 449) que os fatos negativos podem sim ser provados, não se exigindo prova apenas da simples negação dos fatos, como estamos a sustentar.
[8] A máxima, citada por todos os doutrinadores e presente na boa jurisprudência, é de Nicola Framarino dei Malatesta (A lógica das provas em matéria criminal). Para Malatesta este se trata de um princípio ontológico em matéria de prova: o ordinário se presume, o extraordinário se prova. Insuperável essa máxima. Apud Carlos Alberto Reis de Paula, op. cit., p. 92-93.
[9] Por isso mesmo que não precisamos ficar criando situações de inversão do ônus da prova, como defendem bons juízes e doutrinadores, bastando que atentemos para a natureza jurídica dos fatos controvertidos, porque em boa parte dos casos será do réu o ônus de provar o fato contraposto, por ser extraordinário.
[10] Chiovenda, Carnelutti, para os quais as regras de distribuição do ônus da prova devem ser aplicadas ainda na colheita das provas.
[11] Gian Antonio de Micheli, para quem as regras de distribuição do ônus da prova somente serão levadas em consideração pelo juiz se, faltando prova ou não sendo ela suficiente à sua convicção, tiver de decidir, para se evitar o non liquet (art. 126 do CPC). Apud Carlos Alberto Reis de Paula, op. cit., p. 107. Adotam o mesmo pensamento Barbosa Moreira, Dinamarco, Kazuo Watanabe, Nelson Nery, Carlos Alberto Reis de Paula.
[12] De se anotar a péssima redação que foi dada a esta Súmula na revisão geral levada a efeito pelo TST, dando a entender que o empregador tem a obrigação legal de exibir os controles de jornada em juízo, primeiro, porque o art. 74, § 2º, da CLT não é norma de processo; segundo, porque se trata de ônus da prova e não de obrigação da prova, conforme reiteradamente disposto neste trabalho.

Nenhum comentário:

Postar um comentário