O ÔNUS DA PROVA E SUA INVERSÃO
NO PROCESSO DO TRABALHO
3.2. O art. 335 do CPC.
Ainda antes de
examinar os fatos controvertidos para se saber de quem é o ônus da prova, temos
de verificar se quanto ao fato alegado não existem máximas de experiência que
podem ser aplicadas.
A utilização
delas está autorizada pelo art. 335 do CPC, podendo se tratar de: 1) regras de
experiência comum do juiz, com base na observação daquilo que habitualmente
acontece em determinado lugar ou em determinada questão; 2) ou de regras de
experiência técnica, que não integram o seu conhecimento geral, mas provém de
conhecimentos especializados em determinada ciência, arte, ofício ou profissão.
Resultam, pois, de uma atividade intelectual do juiz, de sua cultura geral ou
específica; ex.: em dias de chuva forte não há atividade na lavoura; nos
períodos de safra (colheita) a atividade rural é mais intensa[1];
quando há apenas um vigia ou vigilante no posto de trabalho, é sinal de que não
pode abandonar tal posto durante sua jornada de trabalho.
Citamos em nosso
livro o exemplo dos intervalos intrajornada dos cortadores de cana-de-açúcar e
dos colhedores de laranja, que, segundo as máximas de experiência comum,
advindas de inúmeras instruções, em processos que têm como ré a mesma empresa,
revelam-se praticamente idênticos em todos os casos. Se o juiz já sabe que
naquela empresa os fatos se passam daquela forma, para que instruir todos os
dias um sem número de processos para chegar ao mesmíssimo resultado? Carecem,
pois, de prova, os fatos sobre os quais pairam verossimilhança, de acordo com
as máximas de experiência comum.
Portanto,
confirmado que o vigia ou vigilante trabalhava sozinho no posto determinado,
não terá o autor de produzir prova de que não usufruía intervalo. Verificado
que todas as turmas de trabalho se ativam em condições idênticas ou muito
semelhantes em determinada empresa, no período de corte de cana ou de colheita
de laranja, não terá o autor de provar que usufruía apenas 15min de intervalo
para almoço e outro tanto para café, por exemplo.
3.3. A definição do ônus da prova.
Mas, se nada
disso houver, ou seja, se não existirem fatos notórios, confessados,
incontroversos, presumidos ou sobre os quais haja máximas de experiência,
exsurge o problema de se verificar de quem é o ônus da prova.
Havendo, pois,
fatos controvertidos, relevantes e pertinentes[2],
ter-se-á que investigar sobre o ônus da prova, à luz do art. 333 do CPC, tendo
em vista que, uma vez mais, o art. 818 da CLT apenas enuncia um princípio geral
a respeito da prova.
3.4. A natureza dos fatos controvertidos.
Preleciona
Carlos Alberto Reis de Paula que, dentre as tantas teorias criadas para a
repartição do ônus da prova entre as partes, merecem destaque as de Chiovenda,
Rosemberg e Micheli, especialmente a teoria desenvolvida por Chiovenda, por ter
sido a adotada no direito processual brasileiro (art. 333 do CPC). "Por
esta teoria, indica-se a qual das partes incumbe o ônus da prova, consoante a
natureza dos fatos"[3].
Assim, precisamos verificar se os fatos controvertidos são aquisitivos,
impeditivos, modificativos ou extintivos de direitos.
Giuseppe
Chiovenda, após verificar que não há como estabelecer um princípio geral e
completo para a regência do ônus da prova, asseverando que a justificativa da
repartição do referido ônus entre as partes está num princípio de justiça
distributiva, qual seja, o princípio da igualdade das partes, enuncia que ao
autor compete o ônus da prova do fato constitutivo do seu direito, cabendo,
portanto, ao réu: a) "provar fatos que provam a inexistência do fato provado pelo autor, de modo direto ou indireto
(e dizem-se motivos) e temos aí a
simples prova contrária ou contraprova";
b) ou, "sem excluir o fato provado pelo autor", afirmar e provar
"um outro que lhe elide os efeitos
jurídicos, e aí temos a verdadeira prova do
réu, a prova da exceção"[4]
(destaques do autor).
E explica que a
mencionada repartição do onus probandi leva
em conta as condições de existência de uma relação jurídica, devendo o autor,
assim, provar as condições específicas dessa relação, ou seja, as que lhe são
próprias, essenciais, como o consenso e o preço da coisa na compra e venda. Não
tem, portanto, o autor de provar as condições gerais, comuns a todos os
negócios jurídicos, como a capacidade dos agentes, a seriedade do consenso, que
a coisa não se trata de bem fora do comércio. A falta dessas condições
habitualmente presentes deve ser provada por quem a alegar, o réu, por ser fato
impeditivo. Em síntese: "o autor
deve provar os fatos constitutivos, isto é, os fatos que normalmente produzem
determinados efeitos jurídicos; o réu deve provar os fatos impeditivos, isto é,
a falta daqueles fatos que normalmente concorrem com os fatos constitutivos,
falta que impede a estes produzir o efeito que lhes é natural"[5].
A mesma doutrina
é professada por Moacyr Amaral Santos, para quem a distribuição do ônus da
prova pode ser sintetizada em duas regras:
1ª) ao autor
cabe a prova dos fatos dos quais deduz o seu direito, ao passo que ao réu
incumbe a prova dos fatos que, de modo direto ou indireto, atestam a
inexistência daqueles, ou seja, a prova contrária ou contraprova;
2ª) ao autor
compete a prova do fato constitutivo e ao réu a prova do fato extintivo,
impeditivo ou modificativo, explicando que essa regra "reafirma a
anterior, quanto ao autor, e atribui o ônus da prova ao réu que se defende por
meio de exceção, no sentido amplo"[6].
Convém ressaltar
ainda que não corresponde à melhor doutrina a diuturna afirmação de que não se
produz prova de fato negativo. O que não se pode exigir é que a parte produza
prova da negação do fato, porque absolutamente impossível, ou pelo menos
extremamente difícil. No entanto, do fato negativo se pode exigir a produção de
prova porque, em verdade, eqüivale a uma afirmação, qual seja, a de que o fato
positivo afirmado pelo autor inocorreu. E a doutrina nos dá exemplos clássicos
a esse respeito: se o réu nega que seja italiano é porque tem outra
nacionalidade (Amaral Santos); se o réu nega que o tecido seja vermelho está
afirmando que o tecido é de outra cor (Chiovenda) etc. Chiovenda observa que o
próprio autor pode ter de provar um fato negativo, quando este se constitui no
fundamento de sua demanda, ex.: prova de que não era devedor na ação de
repetição de indébito; prova da omissão culposa na ação de responsabilidade
civil; prova da inexistência do direito (da relação jurídica) na ação
declaratória negativa[7].
Do quanto se
expôs até aqui podemos afirmar:
1º) se o autor
alega um fato aquisitivo do seu direito e o réu simplesmente nega a existência
desse fato, cabe ao autor o ônus da prova, ex.: o autor afirma que prestou
serviços ao réu na condição de empregado, negando o réu a prestação de
serviços; o autor afirma labor em horas extras e o réu nega a sobrejornada
etc.;
2º) se o autor
alega um fato constitutivo e o réu outro lhe opõe, segundo a doutrina cada um
teria de produzir a prova de suas alegações, mas continuaríamos no dilema de
saber de quem é, efetivamente, o ônus da prova, razão pela qual preconizamos,
para a solução do problema, a aplicação da máxima insuperável em matéria de
prova: o ordinário se presume, o
extraordinário se prova[8],
ex.: o autor alega que prestava serviços pessoalmente ao réu, dele recebendo a
contraprestação devida, de forma habitual, e o réu, mesmo reconhecendo tais
fatos (ou não os contrariando), aduz que o autor não era seu empregado - era o
quê, então? - o ordinário é que quem trabalha nessas condições seja empregado,
presumindo-se a subordinação, cabendo, portanto, ao réu o ônus da prova da condição
jurídica do trabalhador (se era autônomo, eventual ou qualquer outra coisa que
não empregado), cabendo-lhe, assim, o ônus da prova do fato contraposto; por
outro lado, se o autor afirma que se ativava das 7h às 17h, sem intervalo intrajornada, defendendo-se o réu dizendo que
ele o fazia das 7h às 16h, com 1h de intervalo, não tem este de provar o fato
contraposto, porque o ordinário é que não se trabalhe em regime de horas
extras, que são extraordinárias;
3º) se o autor
afirma um fato e o réu o reconhece (ou não o nega), mas outro lhe opõe,
impeditivo, modificativo ou extintivo dos efeitos que seriam produzidos por
aquele, cabe ao réu o ônus da prova, porque ao réu incumbe provar o fato que
fundamenta sua exceção (de direito material), ex.: o autor alega que prestava
serviços habitualmente ao réu, dele recebendo salário, mas o réu, reconhecendo
ou não negando tais fatos, argumenta que o autor era autônomo, ou que era
eventual; o autor afirma que laborava das 7h às 17h, sem intervalo
intrajornada, e o réu afirma que ele era gerente, ou que se ativava em serviços
externos sem qualquer controle de jornada.
É curioso notar
que, se o réu alega que o autor era autônomo ninguém duvida de que a ele cabe o
ônus da prova, por se tratar de fato impeditivo do direito afirmado, mas, na
mesma situação, apontada no outro exemplo, em que o réu reconhece o plexo de
fatos afirmados pelo autor, mas alega que este não era seu empregado, a
doutrina e a jurisprudência afirmam que, nesse caso, ao autor incumbe o ônus da
prova. Ora, para situações idênticas, igual deve ser a solução. Se
ordinariamente quem presta serviços de forma pessoal e habitual, recebendo a
devida contraprestação, é empregado, porque presumida a subordinação, não se
justifica tratamento desigual para o caso de o réu alegar: 1) num processo que
o autor não era empregado; 2) e noutro que o autor era autônomo[9].
3.5. Momento da definição.
Questão
interessante é a de se estabelecer qual o momento ideal para a definição do
ônus da prova. Dizem uns que tal deve ocorrer no saneamento do processo, onde o
juiz fixa os pontos controvertidos, decide as questões processuais pendentes e
determina as provas que serão produzidas, designando audiência de instrução, se
necessária, conforme o § 2º do art. 331 do CPC[10].
Outros, e são a
maioria, afirmam que, em verdade, as regras de distribuição do ônus da prova
são regras de julgamento, sendo, portanto, levadas em consideração pelo juiz
apenas quando da prolação da sentença[11].
Daí se vê que o tema é daqueles que não comportam uma definição absoluta.
Quer nos parecer
que, data venia, o juiz deve, sempre
que possível, ao fixar os pontos controvertidos que dependem de prova a seu
respeito, definir de quem é o ônus da prova, porque pode ocorrer de a parte ser
pega de surpresa quando da leitura da sentença, na qual se fez consignar que
dela era o ônus da prova e dele não se desincumbiu, o que fere os princípios do
contraditório e da ampla defesa.
Exemplificamos:
o autor alega que foi empregado do réu, negando este aquela qualidade; na
audiência de instrução o autor não apresenta testemunhas, desistindo o réu de
ouvir as suas; na sentença o juiz decide que o réu não se desincumbiu de seu
ônus, porque ao reconhecer a prestação de serviços de forma pessoal, habitual e
remunerada carreou para si o ônus de provar que ainda assim o autor não foi seu
empregado. E a situação se agrava se não for seguido o princípio da identidade
física do juiz, tendo o que dirigiu a audiência de instrução “desaconselhado” o
réu da produção da prova e isso, como regra, não tiver constado da respectiva
ata.
Demais, há
diversas oportunidades em que o juiz fixa o ônus da prova quando da instrução,
ex.: diante da alegação de justa causa o juiz define que o ônus da prova do
fato é do réu; o réu alega que o autor era autônomo e o juiz define que é dele
o ônus da prova do referido fato; o juiz determina ao réu a exibição dos
cartões de ponto e este não atende, invertendo-se o ônus da prova com base na
Súmula 338 do TST[12].
Por isso não se
mostra desarrazoada a regra do art. 852-D da CLT, que trata do procedimento
sumaríssimo, no qual o juiz tem ampla liberdade para determinar as provas que
serão produzidas, "considerando o ônus probatório de cada litigante".
Assim, o poder inquisitivo do juiz é quase absoluto na busca da verdade real,
como já dispunha o art. 765 da CLT, mas encontra barreira nas regras de
distribuição do ônus da prova, porque do contrário haveria perigosa violação do
devido processo legal.
Pode, no
entanto, presentes as hipóteses que autorizem, o juiz inverter o ônus da prova,
considerando, sobretudo, a hipossuficiência de um e a aptidão para a prova do
outro, o que será verificado oportunamente.
[1] Manoel Antonio Teixeira Filho, Op. cit. (A prova...), p. 71.
[2] Quem disserta com maestria sobre
os fatos que dependem de prova é o mestre Moacyr Amaral Santos, na obra Primeiras linhas de direito processual
civil. 2º vol., 13ª ed., São Paulo, Saraiva, 1990, p. 333-342.
[3] Op. cit., p. 104-105.
[4] Instituições de Direito Processual Civil, vol. II, Tradução do
original italiano por Paolo Capitanio, com anotações do Prof. Enrico Tullio
Liebman; Campinas, Bookseller, 1998, p. 447-449.
[5] Idem, p. 450-452.
[6] Op. cit., p. 347.
[7] Op. cit., p. 447. Chiovenda
leciona mais à frente (p. 449) que os fatos negativos podem sim ser provados,
não se exigindo prova apenas da simples negação dos fatos, como estamos a
sustentar.
[8] A máxima, citada por todos os
doutrinadores e presente na boa jurisprudência, é de Nicola Framarino dei
Malatesta (A lógica das provas em matéria
criminal). Para Malatesta este se trata de um princípio ontológico em
matéria de prova: o ordinário se presume,
o extraordinário se prova. Insuperável essa máxima. Apud Carlos Alberto Reis de Paula, op. cit., p. 92-93.
[9] Por isso mesmo que não
precisamos ficar criando situações de inversão do ônus da prova, como defendem
bons juízes e doutrinadores, bastando que atentemos para a natureza jurídica
dos fatos controvertidos, porque em boa parte dos casos será do réu o ônus de
provar o fato contraposto, por ser extraordinário.
[10] Chiovenda, Carnelutti, para os
quais as regras de distribuição do ônus da prova devem ser aplicadas ainda na
colheita das provas.
[11] Gian Antonio de Micheli, para
quem as regras de distribuição do ônus da prova somente serão levadas em
consideração pelo juiz se, faltando prova ou não sendo ela suficiente à sua
convicção, tiver de decidir, para se evitar o non liquet (art. 126 do CPC). Apud
Carlos Alberto Reis de Paula, op.
cit., p. 107. Adotam o mesmo pensamento Barbosa Moreira, Dinamarco, Kazuo
Watanabe, Nelson Nery, Carlos Alberto Reis de Paula.
[12] De se anotar a péssima redação
que foi dada a esta Súmula na revisão geral levada a efeito pelo TST, dando a
entender que o empregador tem a obrigação legal de exibir os controles de
jornada em juízo, primeiro, porque o art. 74, § 2º, da CLT não é norma de
processo; segundo, porque se trata de ônus da prova e não de obrigação da
prova, conforme reiteradamente disposto neste trabalho.
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