O ÔNUS DA PROVA E SUA INVERSÃO
NO PROCESSO DO TRABALHO
4.2.
Princípio da aptidão para a prova.
Chegamos à
inegável conclusão, destarte, de que o
único princípio, dentre todos os mencionados pelos processualistas já
referidos, aplicável para se ter a inversão do ônus, é o da aptidão para a
prova.
"Significa
esse princípio que a prova deverá ser produzida por aquela parte que a detém ou
que tem acesso à mesma, sendo inacessível à parte contrária. Consequentemente,
é a que se apresenta como apta a produzi-la judicialmente"[1].
Assim, se o ônus da prova é do autor, mas ele, por causa de sua
hipossuficiência econômica, técnica, de informações ou de educação, não tem
como produzi-la, ou se encontra em situação de extrema dificuldade para tanto,
pode o juiz cometer o ônus da prova ao réu, que terá, então, de provar o fato
contrário ao afirmado pelo autor. Exemplo: o autor alega que não fez as
ligações telefônicas para o exterior, cujo valor é muito mais elevado do que o
das contas que vinha pagando, podendo o juiz determinar que a companhia
telefônica produza a prova de que ele fez tais ligações.
Já Carnelutti
dizia que, levando-se em conta o escopo do processo, é preciso verificar a
"conveniência de atribuir a prova à parte que esteja mais provavelmente em
situação de dá-la, e assim com base numa regra de experiência, a qual
estabelece qual das duas partes esteja em condições melhores para fornecer a
prova do fato", concluindo que "Unicamente assim o ônus da prova
constitui um instrumento para alcançar o escopo do processo, que é, não a
simples composição, mas a justa composição da lide"[2].
Então, tendo uma das partes o ônus da prova, mas a outra muito maior facilidade
de demonstrar o fato contrário, pode o juiz inverter o ônus.
Exemplo perfeito
é o dado por César Machado[3]:
numa ação trabalhista aforada por um professor da rede particular de ensino em
face de sua ex-empregadora, uma escola de curso pré-vestibular, em que se
discutia sobre o número de alunos em cada sala onde eram ministradas aulas por
aquele, fato cuja prova era necessária para que se deferisse o adicional
proporcional à quantidade de alunos, houve a inversão do ônus da prova.
Acertada a
decisão do culto magistrado porque era a empresa quem detinha toda a
documentação referente aos alunos matriculados, como diários de classe, recibos
de pagamento de mensalidades, tendo, portanto, muito maior aptidão para a prova
do que o autor, que dificilmente, podendo ouvir apenas três testemunhas, teria
como provar suas alegações[4].
4.3.
Momento da inversão.
Resta investigar e definir, para a
conclusão de nosso estudo, o momento em que se deve dar a inversão do ônus da prova.
Kazuo Watanabe sustenta que as regras de
distribuição do ônus da prova são regras de julgamento, a orientar o juiz
quando não houver prova do fato ou a prova for "dividida", razão pela
qual "somente após a instrução do feito, no momento da valoração das
provas, caberá ao juiz habilitado a afirmar se existe ou não situação de
"non liquet", sendo caso ou não, conseqüentemente, de inversão do
ônus da prova. Dizê-lo em momento anterior será o mesmo que proceder ao
prejulgamento da causa, o que é de todo inadmissível"[5].
Assim também pensam Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco.
Contudo, data maxima venia, a se pensar dessa forma se estará violando os
princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa e, em última
análise, o devido processo legal, já que a parte, diga-se o réu, será pega de
surpresa quando receber a sentença e verificar que não se desincumbiu de um
ônus que nem sequer pensava ter. Ora, se somente na consciência do julgador se
verificou necessária a inversão do ônus da prova, por ocasião do julgamento da
causa, como poderia disso saber o réu? Como poderia antever que o juiz
consideraria que tinha maior aptidão para a prova, se em momento algum do
trâmite processual a matéria lhe foi revelada?
Pensamos, pois, estar corretíssima
Sandra Aparecida Sá dos Santos, quando assevera que "O fator surpresa não
pode existir no processo, seja qual for a natureza do objeto, bem como no que
concerne ao reconhecimento do direito, porque processo e surpresa são
incompatíveis entre si". E completa que, a se pensar que as regras de ônus
da prova são exclusivamente técnicas de decidir, estar-se-á comprometendo
"por completo a defesa do demandado, que antes do julgamento não teria o
ônus processual da produção da prova, porque, até então, seriam aplicadas as
regras gerais do processo"[6].
César Pereira também defende que o momento propício para a inversão do ônus da prova é o início da audiência de
instrução e julgamento, em que o juiz deve fixar os pontos controvertidos e o
ônus processual de cada parte, com base nos arts. 765 e 852-D da CLT[7].
Somente dessa forma as partes terão segurança quanto ao procedimento de que se
vale o juiz para a busca da verdade real.
O mesmo pensamento tem Carlos Roberto
Barbosa Moreira, segundo o qual a tese de que a inversão se deve dar quando do
julgamento ofende manifestamente os princípios do contraditório e da ampla
defesa, porque "ao mesmo tempo em que estivesse invertendo o ônus da
prova, o juiz já estaria julgando, sem dar ao fornecedor a chance de apresentar
novos elementos de convicção, com os quais pudesse cumprir aquele encargo. Não
seria demais recordar, ainda uma vez, que a facilidade da norma que prevê a
inversão é a de facilitar a defesa dos direitos do consumidor, e não a de
assegurar-lhe a vitória, ao preço elevado do sacrifício do direito de defesa,
que ao fornecedor se deve proporcionar"[8].
Por isso o momento em que se deve dar a
inversão do ônus da prova é o da fixação dos pontos controvertidos para a
produção da prova, mormente a oral, ou seja, na audiência, tanto no
procedimento ordinário quanto no sumaríssimo, tendo em vista que não temos
despacho saneador no processo do trabalho.
5.
Conclusão.
Em breve síntese,
podemos concluir que:
1º) antes de se
investigar de quem é o ônus da prova, tem-se que analisar a possibilidade de o
fato alegado ser notório, confessado, incontroverso ou se em seu favor milita
presunção legal ou jurídica de existência ou veracidade, e ainda se quanto a
ele existe máxima de experiência, casos em que dele não se exigirá prova;
2º) havendo fato
controvertido, relevante e pertinente que dependa de prova, exsurge o problema
de se verificar de qual das partes é o ônus da prova, quando então se terá de
averiguar a natureza dos fatos controvertidos, porque ao autor caberá a prova
do fato aquisitivo do seu direito, quando negada a existência desse fato; ao
réu a prova do fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor,
porque o fato constitutivo foi reconhecido, apenas se lhe negando os efeitos
jurídicos; e, diante de fatos contrapostos, temos de aplicar o princípio
ontológico de Malatesta: o ordinário se
presume, o extraordinário se prova, para definir de quem é o ônus de
provar;
3º) pode, no entanto, o
juiz inverter o ônus da prova, com base na hipossuficiência do autor ou no
princípio da aptidão para a prova, desde que o faça quando da fixação dos
pontos controvertidos, para não macular os princípios constitucionais do
contraditório e da ampla defesa e, em última instância, o devido processo
legal.
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Vol.
II, Trad. do original italiano por Paolo Capitanio, com anotações do Prof.
Enrico Tullio Liebman, Campinas (SP), Bookseller, 1998.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Ônus de contestar e o efeito da revelia.
Revista de Processo, vol. 11, nº 41, jan/mar 1986.
GIGLIO, Wagner D. Direito processual do trabalho. 9ª ed.,
São Paulo, LTr, 1995.
GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Teoria Geral do Processo. 10ª ed. rev. e atual., São Paulo,
Malheiros Editores, 1994.
MACHADO JÚNIOR, César Pereira da
Silva. O ônus da prova no processo do
trabalho. 3ª ed. rev. e atual., São Paulo, LTr, 2001.
PAULA, Carlos Alberto Reis de. A especificidade do ônus da prova no
processo do trabalho. São Paulo, LTr, 2001.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual
Civil. 2º vol., 13ª ed., São Paulo, Saraiva, 1990.
SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A inversão do ônus da prova: como garantia
constitucional do devido processo legal. São Paulo, Editora Revista dos
Tribunais, 2002.
SILVA, José Antônio Ribeiro de
Oliveira. Questões relevantes do
procedimento sumaríssimo: 100 perguntas e respostas. São Paulo, LTr, 2000.
TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. A prova no processo do trabalho. 5ª ed.
rev. e ampl., 4ª tiragem, São Paulo, LTr, 1993.
__________. Curso de processo do trabalho: perguntas e respostas sobre assuntos
polêmicos em opúsculos específicos, nº 6: provas. São Paulo, LTr, 1997.
VIANA, Márcio Túlio. Critérios para a inversão do ônus da prova no processo do
trabalho. São Paulo, Revista LTr, ano 58, nº 10, out. 1994.
[1] Carlos Alberto Reis de Paula, op. cit., p. 139.
[2] Apud Márcio Túlio Viana, artigo citado, p. 1223.
[3] Op. cit., p. 147.
[4] Podemos dar ainda o seguinte
exemplo: o motorista que se ativa em longas viagens, por vezes saindo num dia e
retornando apenas no outro, dificilmente terá como provar a alegada
sobrejornada. Tem, pois, o empregador muito maior aptidão para demonstrar o
contrário, inclusive porque detém os discos de tacógrafo, nos quais constam os
horários de funcionamento do veículo que era dirigido pelo autor.
[5] Apud Carlos Alberto Reis de Paula, op. cit., p. 153.
[6] A inversão do ônus da prova: como garantia constitucional do devido
processo legal. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 82.
[7] Op. cit., p. 156-157.
[8] Apud Sandra Aparecida Sá dos Santos, op. cit., p. 84.
Nenhum comentário:
Postar um comentário